sábado, 24 de julho de 2010

"Não Sonho Mais": Chico Buarque (Paulinho Schoffen)



A canção foi composta em 1979 para o filme A República dos Assassinos, de Miguel Faria Jr. (comentário aqui). A música vira pelo avesso, no sonho do amante do policial corrupto, a violência que este pratica, voltando-a contra ele próprio. É o submundo da ditadura que emerge do sonho. 

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Forma e Conteúdo

“Fala-se da dificuldade entre a forma e o conteúdo, em matéria de escrever; até se diz: o conteúdo é bom, mas a forma não, etc. Mas, por Deus, o problema é que não há de um lado um conteúdo, e de outro a forma. Assim seria fácil: seria como relatar através de uma forma o que já existisse livre, o conteúdo. Mas a luta entre a forma e o conteúdo está no próprio pensamento: o conteúdo luta por se formar. Pra falar a verdade, não se pode pensar num conteúdo sem sua forma. Só a intuição toca na verdade sem precisar nem de conteúdo nem de forma. A intuição é a funda reflexão inconsciente que prescinde de forma enquanto ela própria, antes de subir à tona, se trabalha. Parece-me que a forma já aparece quando o ser todo está com o conteúdo maduro, já que se quer dividir o pensar e o escrever em duas fases. A dificuldade de forma está no próprio constituir-se do conteúdo, no próprio pensar ou sentir, que não saberiam existir sem sua forma adequada e às vezes única.” (Clarice Lispector, A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 254-255).

Dante Milano

Vazio

Este céu que me leva ao fim de tudo,
Eternidade vista num momento,
Olhar imenso de consolo mudo,
Aparência que lembra o esquecimento...

MILANO, Dante. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: Núcleo Editorial da UERJ, 1979, p. 47.

"Cais": show em comemoração aos 35 anos do Clube da Esquina


Cais
Milton Nascimento e Ronaldo Bastos  
  
Para quem quer se soltar 
Invento o cais 
Invento mais que a solidão me dá 
Invento lua nova a clarear 
Invento o amor 
E sei a dor de encontrar 

Eu queria ser feliz 
Invento o mar 
Invento em mim o sonhador 

Para quem quer me seguir 
Eu quero mais 
Tenho o caminho do que sempre quis 
E um saveiro pronto pra partir 
Invento o cais 
E sei a vez de me lançar  

segunda-feira, 19 de julho de 2010

"Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo"



"Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo", de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz (seguem algumas críticas do longa: Pipoca Moderna, Época, Fred Burle no Cinema), é um filme sobre a solidão humana. A viagem funciona como recurso de que dispõe o personagem, o geólogo José Renato, para fazer o trabalho de luto pelo fim de uma relação de amor, seu casamento com uma botânica que ele refere o tempo todo como "galega". Aos poucos, fica-se sabendo que a história acabou, e que a viagem é uma tentativa de elaborar o fim. A desolação da paisagem natural confunde-se com o abandono e o sofrimento do personagem. Isso fica claro nas falas sobre geologia: a referência às fissuras das rochas nunca é isenta de uma confluência com as fissuras que atravessam o personagem. Melhor dizendo: a insistência nas fissuras é signo de que, o tempo todo, o geólogo está falando de si, de seu sofrimento, de suas fraturas. No melhor estilo road movie, o personagem, entre a ficção e o documentário, vai ao encontro de outras histórias de desamparo e solidão, o que lhe permite redimensionar o sofrimento. A viagem sequer parece comportar um retorno, e talvez não haja mesmo qualquer possibilidade de retorno, quando o tempo entra como elemento da paisagem. À dada altura ele diz: "viajo porque preciso, não volto porque ainda te amo". O ponto culminante do filme, não da viagem, é uma verdadeira pérola que faz significar o tempo no contexto da viagem: uma placa no alto de uma espécie de torre, numa cidade prestes a desaparecer pela inundação de uma barragem a ser construída: "HOMENAGEM DO POVO DO SÉCULO XIX AO POVO DO SÉCULO XX". Impossível não rir da ironia que atravessa a singeleza de um gesto que, destinado a ser mais que o tempo, é também por ele devorado.

domingo, 18 de julho de 2010

Julio Cortázar

Trabalhos de escritório

Minha fiel secretária é das que tomam sua função ao pé da letra, e já se sabe que isso significa passar para o outro lado, invadir territórios, enfiar os cinco dedos no copo de leite para tirar um pobre cabelinho.
Minha fiel secretária se ocupa ou pretenderia ocupar-se de tudo em meu escritório. Passamos o dia travando uma cordial batalha de jurisdições, um intercâmbio sorridente de minas e contraminas, de saídas e retiradas, de prisões e resgates. Mas ela tem tempo para tudo, não só procura apropriar-se do escritório como cumpre escrupulosamente suas funções. Por exemplo, as palavras, não há dia que não as encere, as escove, as coloque na prateleira exata, as prepare e as enfeite para suas obrigações cotidianas. Se me vem à boca um adjetivo prescindível porque todos eles nascem fora da órbita de minha secretária ― e de certa maneira de mim mesmo ―, já está ela de lápis na mão agarrando-o e o matando sem lhe dar tempo de colocar-se ao restante da frase e sobreviver por descuido ou por hábito. Se eu deixasse, se neste mesmo instante eu deixasse, ela jogaria estas folhas na cesta, enfurecida. Está tão decidida a que eu viva uma vida condenada, que qualquer movimento imprevisto a leva a erguer-se, toda orelhas, toda rabo em pé, tremendo como um arame ao vento. Tenho que disfarçar, e a pretexto de que estou redigindo um relatório, encher algumas folhinhas de papel cor-de-rosa ou verde com as palavras que eu gosto, com as suas brincadeiras, os seus saltos e as suas brigas raivosas. Enquanto isso, minha fiel secretária arruma o escritório, aparentemente distraída mas pronta para dar o bote. Na metade de um verso que nascia tão contente, pobrezinho, eu a ouço começar seu horrível guincho de censura, e então meu lápis volta a galope às palavras proibidas, risca-as correndo, ordena a desordem, fixa, limpa, dá esplendor ― e o que sobra é provavelmente muito bom, mas essa tristeza, esse gosto de traição na língua, essa cara de chefe com sua secretária.

CORTÁZAR, Julio. Histórias de cronópios e de famas. Trad. Gloria Rodríguez. 12. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 47-48.