Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

29º Bienal de São Paulo (uma tentativa)


Fui conferir, no Palácio das Artes de Belo Horizonte, uma pequena sucursal (aqui) da 29º Bienal de São Paulo (aqui aqui). A proposta parte de um belíssimo verso de Jorge de Lima, "Há sempre um copo de mar para um homem navegar", e pretende discutir as relações entre arte e política. Daí a minha hesitação. Vi coisas por lá que não fizeram pensar em arte, em caráter francamente panfletário, primando pelo mau gosto. A primeira coisa que vi foi esse curta do Godard, que já conhecia, legendado em português lá, em inglês aqui, que faz uma distinção básica e fundamental entre arte e cultura, incidindo em questões que permeiam a cena contemporânea europeia, e que eu, forçosamente, ignoro: o vídeo tem uma intenção política, mas seu texto me escapa em grande parte.



No entanto, do que alcancei do vídeo, considerei-o uma boa moldura, mas o que vinha depois, pelo menos naquela galeria, não encaixava na moldura: eu me sentia por vezes diante de discursos sobre arte e política, ou seja, no campo da cultura, e não diante da arte. Uma das propostas me pareceu, particularmente, um grande equívoco: assim como via de regra não meto a falar da Europa ou de qualquer outro lugar do mundo, a não ser que os conheça pelo menos o suficiente para não incorrer em equívocos, acho muito estranha a facilidade com que certos estrangeiros vêm falar da América Latina ou do Brasil, pecando pela superficialidade e incidindo na estereotipia. É o caso de Jimmie Durham, cujo Bureau for research into Brazilian normality (Centro de pesquisa da normalidade brasileira), apresenta sua “investigação contínua sobre as realidades e os mitos curiosos da cidade de São Paulo e do Brasil em geral”. Na instalação, estão recortes de jornal, revistas, folhetos de todo tipo, fotografias e objetos que, por alguma razão, são característicos do país ou de acontecimentos locais  todos devidamente acompanhados de notas escritas à mão com as observações do artista. Segundo ele, “como todos os regimes americanos colonizadoso Brasil vive numa área que não corresponde exatamente ao mundo real em que se situa. A questão de como, então, ele funciona numa base cotidiana e internacional é merecedora de um estudo detalhado” (aqui). 

Mas que coisa mais interessante! Pesquisar a normalidade brasileira. Como o sujeito que diz tais idiossincrasias (palavra aqui bastante suspeita) é americano de origem, permito-me perguntar se seu país vive numa área que corresponde exatamente ao mundo real em que se situa (se é que alguém sabe explicar o que é isso, a diferença entre o espaço imaginário de uma nação e o espaço efetivamente ocupado). Tanto não vive que vive fazendo suas invasões e intervenções, aqui, ali, lá, acolá. Tudo isso dentro da mais absoluta normalidade americana, para não dizer dentro da nova ordem (norma) mundial. Nada mais anacrônico, portanto, num mundo que guerreou como nunca pela demarcação de fronteiras, e que se viu obrigado a repensá-las. Até quando essa aceitação passiva do que os outros têm a dizer de nós, eu não sei... Deparar-me com essa pérola desanimou-me muito de ver o restante. 

Mas na outra galeria encontrei propostas que atenuaram essa impressão negativa. Havia coisas boas, enquanto proposta estética, e eu me permiti entrar em contato com elas. Uma delas foi esta, da artista plástica Cinthia Marcelle, "Sobre este mesmo mundo": 

"Sobre este mesmo mundo é uma instalação resultante de um apagamento. Abaixo de um longo quadro-negro, montes de pó de giz repousam denunciando tudo que um dia ali já foi expressado. Da mancha branca sobre o quadro, avistam-se versões, dizeres e paisagens deixadas para trás. Apropriando-se de signos da educação formal, a obra subverte a doutrina escolar e reserva à artista a oportunidade de vivenciar produtiva e imaginativamente o 'desaprendizado'. No vídeo Buraco negro (aqui), dois personagens fora de quadro dialogam em sopros e espirros diante de uma porção do mesmo giz. Os diálogos impulsionam diagramas visuais de branco sobre preto e, compartilhados numa pequena sala escura atrás do quadro, mantêm aberta e sem hierarquias a inscrição dos atos de fala e resposta na história" (aqui).

[imagem obtida aqui]

E mais todo um conjunto de propostas boas, não sei se esteticamente boas, discutindo as relações entre arte e política. Uma delas é o vídeo clássico de Clarice Lispector, sua última entrevista dada em vida, em que fala de sua crônica "Mineirinho" (a alusão à crônica aparece apenas no final da entrevista). A escritora mostra-se bastante cética em relação ao potencial de transformação de seu trabalho.


E também Cildo Meireles e o assassinato de Herzog (aqui), bem como outras propostas tendo como foco Herzog e outros assassinatos políticos, aqui e alhures. Ainda, a série de assassinatos de Gil Vicente (aqui). "Há sempre um copo de mar para um homem navegar".

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