Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Borges e a maravilha apócrifa do caos (da linguagem)

Essas ambiguidades, redundâncias e deficiências lembram as que o dr. Franz Kuhn atribui a certa enciclopédia chinesa intitulada Empório celestial de conhecimentos benévolos. Em suas remotas páginas está escrito que os animais se dividem em a) pertencentes ao Imperador, b) embalsamados, c) amestrados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos g) cachorros soltos, h) incluídos nesta classificação, i) que se agitam feito loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel finíssimo de pelo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar o jarrão, n) que de longe parecem moscas. O Instituto Bibliográfico de Bruxelas também pratica o caos. 
[...]
Registrei as arbitrariedades de Wilkins, do desconhecido (ou apócrifo) enciclopedista chinês e do Instituto Bibliográfico de Bruxelas; sabidamente não há classificação do universo que não seja arbitrária e conjectural. A razão é muito simples: não sabemos o que é o universo. 'O mundo', escreve David Hume, 'talvez seja o esboço rudimentar de algum deus infantil que o abandonou pela metade, envergonhado de seu trabalho deficiente; é obra de um deus subalterno, de quem os deuses superiores zombam; é a confusa produção de uma divindade decrépita e aposentada, que já morreu' [...]. É possível ir mais longe; é possível suspeitar que não haja universo no sentido orgânico, unificador, que tem essa ambiciosa palavra. Se houver, falta conjecturar sobre seu propósito; falta conjecturar sobre as palavras, as definições, as etimologias, as sinonímias do secreto dicionário de Deus. 
[...]
Esperanças e utopias à parte, talvez o que de mais lúcido se tenha escrito sobre a linguagem são essas palavras de Chesterton: 'O homem sabe que há na alma matizes mais desconcertantes, mais inumeráveis e mais anônimos que as cores de uma floresta outonal... Crê, no entanto, que esses matizes, em todas as suas fusões e conversões, são representáveis com precisão por um mecanismo arbitrário de grunhidos e chiados. Crê que de dentro de um corretor da bolsa possam sair ruídos capazes de significar todos os mistérios da memória e todas as agonias do desejo'.

BORGES, Jorge Luis. O idioma analítico de John Wilkins. Trad. Davi Arrigucci Jr. ___. Outras inquisições (1952). São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p.121-126. 

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