Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


terça-feira, 25 de janeiro de 2011

a pessoa mais encantadora que conheci ano passado

Tenho o hábito de dormir cedo, mas volta e meia, à meia noite, me acontecem coisas inesperadas. O que fazer? 

Eu entrevi, num episódio muito rápido e intenso que vivenciei, o estranho imponderável  que pontua a vida, e por isso esse post se chama a pessoa mais encantadora que conheci ano passado. Não foi a mais interessante, a mais inteligente, a mais bonita, a mais qualquer coisa que se diz, quando isso é possível, ao se conhecer uma pessoa, pois a frustração também entra no rol das adjetivações. Encantador(a) é outra coisa, é uma raridade. 

A pessoa mais encantadora que conheci ano passado foi um médico que me atendeu numa situação muito delicada, e mesmo eu já escrevi sobre isso aqui, logo que a coisa se deu. Mas como naquele conto "A quinta história", da Clarice Lispector, outras versões são possíveis. Esta é a segunda história. Encontrando-me em viagem ao interior de Goiás, entre o final de outubro e o início de novembro, numa excursão turística à Chapada dos Veadeiros, eis que meu corpo sucumbiu ao esforço, e caí de cama, longe de casa. À meia noite acordo, olho espantada para o relógio, e saio do quarto da pousada em busca de ajuda. Nisso uma vizinha de quarto me vê e pergunta o que tenho, o que me faz imediatamente cair num pranto que dava bem a medida do meu desamparo. Eu não sabia o que eu tinha, mas sabia o que sentia, algo acentuado pelo medo. É incrível minha capacidade de angariar a simpatia de desconhecidos. O auxílio veio, foi brotando gente daqui e dali. Uma dessas pessoas era o médico. Não sei o que ele viu em meu choro, certamente medo, o fato é que ele começou a falar, sem parar, se movimentando e brincando, as coisas mais disparatadas e estranhas, que me pareciam vindas de uma esfera até então estranha ao meu saber, letrado ou não, à minha vivência mais urbana que rural. Alguma coisa que remetia ao universo de Guimarães Rosa. Ali, lá, à meia noite de uma noite chuvosa, entre desconhecidos que cuidavam de mim sem nenhuma obrigação ou interesse, eu estava adentrando alguma fronteira, que só quem chegou perto pode saber o que é. E de repente então eu parei de chorar e percebi o médico, e percebi um ser que eu só posso chamar de encantador. O que se passou ali eu não sei, pouco do que ele disse minha memória reteve. Mas alguma coisa se passou. Fui medicada, e a própria vizinha me levou de volta ao quarto, com todo o cuidado. Aí ela disse uma coisa que tem a ver com esse meu dom de angariar a simpatia de desconhecidos. Ela disse algo assim: você nunca vai estar sozinha. Há uma legião de pessoas no mundo, desconhecidas, incógnitas, inesperadas, surpreendentes. Muitas vezes, esse desconhecimento ajuda mais que a familiaridade. Aliás, A legião estrangeira é o título de um livro da Clarice Lispector.

Nenhum comentário:

Postar um comentário