Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

o pão nosso de cada dia

Quem frequentou a Igreja Católica aprendeu a rezar o Padre-Nosso. Proferia-o mecanicamente, assim como mecanicamente cantava na escola o Hino Nacional. Quando descobri o que a oração do pai nosso me pedia, nunca mais consegui rezá-lo: perdoai as nossas ofensas assim como perdoamos a quem nos tenha ofendido. Não alcancei a bem-aventurança da capacidade do perdão, e tento não ofender meu próximo (de forma que, quando é o caso de perceber e me desculpar por isso, vou direto ao ofendido, sem precisar passar por Deus). Não me vejo depositária de crimes, ofensas, erros ou "pecados" que pressuponham a penitência de rezar o pai nosso, embora me veja depositária de crimes para os quais não sei se encontrarei qualquer forma de perdão, pois são crimes dos quais a consciência me acusa, são coisas pelas quais se passa vida afora, e se percebe o erro, a falha, o crime justamente porque a identidade é movente, porque não se é o mesmo o tempo todo, e quando se percebe já era, já foi, já se é outro, um outro que, justamente por ser outro, foi capaz de perceber o que nele mudou, e por isso a acusação: então, olhando-me à distância, a tendência é acusar-me. Numa aula recente, em que levei para os alunos esta frase do Paulo Mendes Campos, "Ruim, na infância é a incompreensão dos mais velhos" (que encontrou boa acolhida), disse, numa das turmas, que eu não sabia quando, no transcurso da infância, havia perdido minha inocência... Mas essa digressão é apenas um atalho: inocente, rezava o pai nosso sem pensar no que diziam suas palavras, sem pensar em nada; culpada, não consegui mais proferir suas palavras. Se posso, na oração, até mecanicamente pedir perdão por uma falta que não cometi (pelo menos não conscientemente: que ofensas? que crimes?), na segunda parte do enunciado, a que admite o perdão, eu sou um fiasco. Sempre que me percebo falhando ou errando com o próximo, sou a primeira a reconhecer e tentar me desculpar. Mas isso não me garante vida mais amena ou reciprocidade. Ofendo e peço desculpas. Sou ofendida e fica por isso mesmo? Às vezes tem ficado. Difícil. Li recentemente este livro do Moacyr Scliar, Enigmas da culpa, mas apesar da boa intenção da obra e da leitura, não ajudou muito, talvez porque essas coisas não se resolvam num piscar de olhos. Mas o que quero dizer é outra coisa: ao abrir mão do Padre-Nosso, essa oração impossível a uma criatura concomitantemente rebelde e cordata como eu, pude disccernir outras caminhos. Não é difícil perceber que a poesia, esse peculiar arranjo verbal em que tudo fica mais sofisticado e interessante, tornou-se meu pão nosso da cada dia. Ela me trouxe uma coisa muito boa: além de aguçar minha percepção/intuição, eu passei a dar menos importância às coisas, aos fatos, aos acontecimentos, às próprias pessoas. De forma que muitas vezes sequer percebo a ofensa a mim dirigida. Então, para que falar em perdão? 

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