Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


terça-feira, 26 de abril de 2011

aparência e essência, duas farsantes da mesma família

Semanalmente vou à zona sul, em virtude da análise. Procurando um lugar diferente para almoçar hoje, deparei-me com um buffet de saladas. Lá pelas tantas, chega um grupo que se distinguia por portar uma câmera filmadora profissional. Bulício geral: reportagem da TV Globo com a Renata Ceribelli para um quadro do Fantástico sobre alimentação light, "Medida Certa". A moça que estava ao meu lado foi que me informou isso, eu não reconheceria a cuja, tão diferente estava do que aparece na televisão. Ninguém que estava por lá comendo deu muita bola, exceto os funcionários do restaurante. Terminei de comer, paguei e saí. Ainda tinha um tempo disponível, entrei numa pequena livraria em frente, nada muito especial. Folheia daqui, folheia de lá, acabei esbarrando na biografia de Clarice Lispector, li alguns trechos das páginas iniciais e não gostei: essa obsessão biográfica, esse devassar da intimidade do autor/criador acaba respingando na obra, porque não sobram frinchas por onde o mistério possa ainda ser entrevisto. No fundo, é a mesma malfadada vontade de explicar a obra pela biografia, justificar a criação pelo eu biográfico. De outro modo, como se explicaria esse surto editorial em torno de Clarice Lispector: cartas trocadas com as irmãs, escritos de revistas femininas, correio feminino, fotografias e agora uma biografia ricamente detalhada. Não parece interessante essa devassa na intimidade de alguém, parece antes um voyerismo sem freios, que não consegue se saciar. Esse furor biográfico trai a crença romântica na unidade do eu. E a obra de Clarice Lispector questiona radicalmente isso. Basta ler "O ovo e a galinha." Qual a conexão disso com o episódio das saladas? Nenhuma, exceto que de um lado da rua a preocupação era com a aparência e do outro com a essência.

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