Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


terça-feira, 12 de abril de 2011

esquinas

Há uma canção brasileira a que sempre recorro quando quero ensinar o emprego do porquê com o valor de pronome relativo: "Só eu sei as esquinas por que passei." Está claro que não gosto da música nem de seu compositor/intérprete. Gosto só deste enunciado. Por muitas razões já o tomei para mim. Por outras tantas, não é difícil vê-lo sair da boca de um personagem de romance russo, transmutado, por exemplo, em "Só eu sei os infernos que atravessei." Já um personagem de Kafka não diria jamais tal frase, pois não há espaço para remissão em suas narrativas, exceto, talvez, Carta ao pai. Um personagem de Machado de Assis lamentaria suas esquinas (tenho servido de agulha a muita linha ordinária...), mas não surtiria efeito, pois viria em seguida alguém dizer que é assim mesmo. Um personagem de Guimarães Rosa diria que o sertão está cheio de veredas a confundir a pessoa comum mortal, mas que há uma promessa de arco-íris a quem por elas se aventurar sem se perder. Não imagino Stephen Dedalus dizendo tal frase, ele era confiante demais na própria força: o pesadelo estava na História, incidindo aí na subjetividade, o que não parece fazer muita diferença, haja vista que admitir-se confinado aos labirintos da História é colocar o homem numa estranha prisão, a linguagem. Paulo Honório diria a frase, e mandaria todos para o inferno como uma forma de responsabilizá-los pelos seus infortúnios. Os personagens de Borges não a diriam, mesmo os heróis infelizes de "O jardim dos caminhos que se bifurcam" ou "A morte e a bússola". Mas os que não consigo imaginar, em absoluto, lamentando-se por qualquer coisa à maneira de "só eu sei..." são os personagens de Clarice Lispector. É que não existe propriamente um eu em suas narrativas, no sentido mais convencional da subjetividade. Eles (ou elas) têm a altivez dos que nunca darão explicações nem a eles mesmos. Então a literatura ensina a dobrar esquinas, mas as esquinas e vãos da subjetividade. Foi preciso escrever isso até o final para que eu pudesse me dar conta das armadilhas da subjetividade, sua rarefação.  

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