Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quarta-feira, 14 de setembro de 2011

livros, panelas, a vida

Comprei panelas, e mudei bastante os hábitos alimentares. Sei cozinhar, agora sei que sei. Não há qualquer mistério: observo as panelas, os alimentos cozinhando, o fogo fazendo o papel que lhe cabe. Mais de uma vez, diante do fogo transformando em alimento aquilo que vou jogando nas panelas sem muita fórmula, ponderei sobre esse estranho poder de transformação do fogo, e me pareceu entrever qualquer coisa da vida no processo, resumido de forma tosca no dito “O todo é maior que as partes”. Ocorre que na busca pela frase do Dedalus no Ulisses acabei relendo um diálogo primoroso, e esbarrei nisso:
― Tenho medo dessas grandes palavras ― disse Stephen ― que nos fazem tão infelizes.
O fato é que intentava me dirigir para a estante da sala para guardar o Dedalus e seus ditos desconcertantes ― não aqueles enfeixados no Ulisses, mas sim no Retrato do artista quando jovem, em que julgava estar o dito célebre sobre a História ― quando, instintivamente, percebi estar me dirigindo com o livro para a cozinha. Não, de forma alguma pensei na heresia de queimar meus livros, isso eu jamais faria, mas antes alguma coisa muito mais intrigante e reveladora: que as palavras que distingo neles, nos livros, que sorvo com tanta vontade como se fossem alimento, podem estar precisando de um fogo qualquer para aquecê-las, transformá-las, como vejo o fogo agindo lenta e misteriosamente nos alimentos, e se a cozinha e a estante ficaram tão próximas em meus movimentos é porque os dois alimentos fundiram-se no mesmo gesto ― vital. A imagem me atrai, mas não quero que as palavras queimem. O fogo traz a marca de Prometeu.

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