Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quinta-feira, 29 de setembro de 2011

no ponto de ônibus

Como hoje é dia de rock de novo, precisava escolher bem o trajeto para voltar para casa. Certo frisson no Centro anunciava complicações. Pensei numa forma, mas não funcionou ― já considerando descartada, por impraticável, a primeira opção. Na avenida principal fui para a fila do seletivo. Foi então que comecei, sem perceber, a ouvir a conversa no celular próximo. Um senhor fazendo aniversário de 59 anos recebeu uma ligação, o que entendi logo. O que não entendi era certo jeito embargado dele de falar, como demorando a anunciar alguma coisa. Até que ― e o fiscal já tinha dito que o ônibus ia demorar porque os melhores veículos foram liberados para o evento ―, até que ele disse com todas as letras para o interlocutor, seu irmão: "Perdi tudo, cara. Perdi tudo." Repetiu isso, algumas vezes. Fiquei imaginando o que ele poderia ter perdido, que tudo era aquele, e o que era perder tudo chegando perto dos 60 anos de idade. O homem parecia não se importar que os outros escutassem sua conversa, e mesmo pareceu-me que ninguém estava prestando atenção, tal o modo com que a promessa de ir para casa o quanto antes apaziguava a sensação de caos de mais um dia. “Perdi tudo”. Fui para outro ponto, tentar um ônibus vazio. Que viver é risco todo mundo sabe. Mas aquele homem era todo desamparo. Quando se escuta uma coisa assim o instinto de sobrevivência acorda. Estará alguém protegido? Iuri Gagárin foi o homem misterioso que inaugurou uma nova forma de viajar. Não obstante sua imensa coragem (ou quem sabe inocência), morreu misteriosamente sete anos depois num treinamento de rotina.

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