Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quinta-feira, 1 de setembro de 2011

o nó cego da vida

Já vi um homem sem rosto ― sem face? Era uma deformidade, ou perda, a tal ponto estranha, que o que restava não compunha uma face, não encontrava lugar numa narrativa. Isso faz tempo, estava indo para uma sessão de análise. Vi também, há pouco tempo, um ser muito mutilado esmolando, gritando por caridade, filho que não encontrou pai ou mãe, em frente a uma agência bancária. Dentro da agência, em que precisava entrar para apanhar o dinheiro que move a engenhoca, falas e olhares constrangidos ― isso é uma questão social... ― enquanto me vinha o pensamento de sempre, diante de situações absurdas: como passar diante do horror de mãos dadas com meu amor? Vi casais passando, apertando o passo, desviando o olhar, unindo mais firmemente as mãos diante do súbito desamparo: seus sonhos são doces, prevêem filhos sadios, querem muito estar sempre, forevermore, num comercial de margarina. A fantasmagoria não pode turvar seu desejo. Eu ainda não aprendi a passar incólume pela face do horror da vida. Este texto, na verdade, está entrando no lugar de outro, o insólito do dia de hoje, em que busquei avidamente me aproximar do sagrado. Fragmentos produzindo um brado matinal, dirigido à atual analista quase como um grito que não pode mais esperar: eu não sou máquina! O bonde descarrilou, houve vítimas fatais, e a Ana precisava chegar ao Jardim Botânico. A outra Ana chegou, depois do brado, e teve um interlúdio de paz naquele refúgio em que havia o murmúrio de uma pequena cachoeira, o bastante para acalmar difíceis memórias. Depois o inacreditável de uma missa assistida do início ao fim, com direito àquela bendita hóstia e lágrimas. Mas logo depois, caminhando em busca de comida, alimento para o corpo, eu vi uma barata esmagada na calçada, e lembrei-me daquela outra comunhão, mais severa, atroz, quase impossível, quem sabe motivada pela tentativa de aceitar, humildemente, a estupidez da vida, seu horror, aceitar, essa palavra tão difícil, porque não faz sentido sem o movimento efetivo da aceitação, assim como o sim é performativo: dizer sim é aceitar. Barata morta, notícia do bonde, Jardim Botânico, massa branca da hóstia ― em qualquer desordem. Minhas dores serão justas? Ou por elas uma outra coisa está me sendo dita? 

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