Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quarta-feira, 14 de setembro de 2011

sonhando a própria angústia da História

Apesar de tudo, gosto dos meus sonhos ― eles me economizam a sessão extra de análise semanal. A maravilha da condensação: um retalho da novela, outro de conversa, outro da literatura ― e o substrato denso e indelével da vida. Indelével ― a beleza desta palavra não trai a complexidade do que nela subjaz. Fundo acima de tudo inescrutável, como um filme cujo entendimento estivesse fora de qualquer cogitação hermenêutica. O que sonhei esta noite mal cabe em palavras. Não cabe, aliás, porque pareço eu mesma, no sonho, sendo tragada por alguma coisa que pareço assistir. Ontem revisitei, em memória, o conto “Pai contra mãe”, de Machado de Assis. Também me chegou em casa o livro Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi, de José Murilo de Carvalho. Textos aproximadamente da mesma quadra histórica, que sinto certa urgência de estudar. E o onipresente achado de Stephen Dedalus ― “A história é um pesadelo de que tento despertar-me”. Sonhar o próprio pesadelo da História, vivendo numa cidade à beira do caos, e traçar nas palavras uma tentativa de catarse desse pesadelo, pois há em curso alguma coisa estranha, e sonhar é entrever possibilidades de acessar o que o dia, mais do que nunca, está tentando negar. Não é só a questão de sonhar ― é o espanto de amanhecer com a sensação de que um mundo tão ou mais vasto que o dia foi visitado, e são tantos os feixes cruzados em umas poucas imagens que a melhor apropriação que consigo fazer desta noite é que a linguagem pode ser brutalmente subtraída de uma vida (e isso equivaleria a perder a própria vida), embora as pessoas continuem falando, falando as coisas que se dizem todo dia.

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