Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Franz Kafka (narrativas do espólio)

SOBRE OS SÍMILES

Muitos se queixam de que as palavras dos sábios não passam de símiles, mas não utilizáveis na vida diária ― e esta é a única que temos. Quando o sábio diz: “Vá para o outro lado”, ele não quer significar que se deva passar para o lado de lá, o que, seja como for, ainda se poderia fazer, se o resultado da caminhada valesse a pena; ele no entanto se refere a algum outro lado lendário, a alguma coisa que não conhecemos, que nem ele consegue designar com mais precisão e que, também neste caso, não pode nos ajudar em nada. Todos esses símiles, na realidade, querem apenas dizer que o inconcebível é inconcebível, e isso nós já sabíamos. Porém aquilo como que nos ocupamos todos os dias são outras coisas.
A esse respeito alguém disse: “Por que vocês se defendem? Se seguissem os símiles, teriam também se tornado símiles e com isso livres dos esforços do dia a dia”.
Um outro disse: “Aposto que isso também é um símile”.
O primeiro disse: “Você ganhou”.
O segundo disse: “Mas infelizmente só no símile”.
O primeiro disse: “Não, na realidade; no símile você perdeu”.

KAFKA, Franz. Narrativas do espólio. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.210-211.

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