Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 8 de outubro de 2011

Julio Cortázar: linguagem e criação

“Morelli parece convencido de que, se o escritor continuar submetido à linguagem que lhe venderam, juntamente com a roupa que veste, e o nome e o batismo e a nacionalidade, sua obra não terá outro valor senão o estético, valor que o velho parece desdenhar cada vez mais. Em algum lugar é bastante explícito: segundo ele, não se pode denunciar o que quer que seja se a denúncia for feita dentro do sistema a que pertence o denunciado. Escrever contra o capitalismo com a bagagem mental e o vocabulário que derivam do capitalismo é perder tempo. Serão obtidos resultados históricos como o marxismo e tudo o que você quiser, mas o Yonder não é exatamente história, o Yonder é como as pontas dos dedos que emergem das águas da história, procurando um lugar onde se agarrar. [...] E por isso o escritor tem de incendiar a linguagem, acabar com as formas coaguladas e ir ainda mais longe, por em dúvida a possibilidade de essa linguagem ainda esteja em contato com aquilo que ele pretende nomear. Não tanto as palavras em si, porque isso é o que menos importa, mas a estrutura total de uma língua, de um discurso. [...] Morelli não acredita nos sistemas onomatopéicos nem nos letrismos. Não se trata de substituir a sintaxe pela escrita automática ou qualquer outro truque do gênero. O que ele deseja é transgredir o fato literário total, o livro, se você quiser. Às vezes, na palavra; às vezes, no que a palavra transmite. Procede como um guerrilheiro, faz explodir o que pode, o resto segue seu caminho. Não pense que ele não é um homem de letras.”

CORTÁZAR, Julio. O jogo da amarelinha. Trad. Fernando de Castro Ferro. 15 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p.513.

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* "O que chamamos realidade, a verdadeira realidade que também chamamos Yonder (por vezes ajuda dar muitos nomes a uma entrevisão, já que, pelo menos, evitamos que a noção se feche e se congele), essa verdadeira realidade [...] não é algo que possa vir, uma meta, o último degrau, o final de uma evolução. Não, é algo que já está aqui, em nós. É algo que se sente, sendo suficiente ter a coragem de estender a mão na escuridão." (p.511-512)

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