Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sexta-feira, 28 de outubro de 2011

o processo

Nunca me arrisco muito a falar de Kafka, embora seja um dos escritores que mais impacto teve sobre mim. A dificuldade vem do quanto sua obra comporta de enigma, e já ao afirmar isso estou correndo riscos indesejáveis. Ocorre que A metamorfose, lido ainda na juventude, me causou profundo incômodo, a ponto de eu não querer mais voltar a pôr as mãos no livro. Lendo a coletânea de artigos de Modesto Carone dedicada à obra do escritor tcheco, Lição de Kafka, uma nova possibilidade se deu. Além de abrir uma brecha na opacidade da estranha metamorfose irreversível do homem em inseto monstruoso, um trecho prendeu-me a atenção: “... expressões literais como ‘o estado atual de Gregor’ sugerem que a metamorfose do herói pode ser entendida como o resultado de um processo, ou seja: como um momento definido que teria sido precedido por outros que ficaram aquém da narrativa e que por isso não foram tematizados por ela.” (p.22). A palavra processo remeteu-me de imediato à obra-prima do escritor, O processo. Buscando outros sentidos além do jurídico, do âmbito da lei, o substantivo processo pode significar ‘ação continuada’, ‘seguimento’, ‘decurso’, ‘andamento’, ‘desenvolvimento’, ‘marcha’, ‘sequência continuada de fatos ou ações que se reproduzem com certa regularidade’. Então a metamorfose não é algo que se dá da noite para o dia: está inserta em um processo que a personagem cheia de culpa tenta desesperadamente entender. Não há o episódio isolado em si: há uma totalidade que escapa, de uma opacidade impenetrável. O processo, assim, tanto quanto a encenação de um processo jurídico absurdo e impenetrável às tentativas de entendimento (por parte da personagem e do leitor), é também um processo no qual a personagem, movida pela culpa, tenta entender sua participação no desenrolar dos acontecimentos para deles se desvencilhar. A culpa é inseparável do processo, no sentido de a personagem aceitar, de certa forma, sua participação nos fatos estranhos que a envolvem. Para simplificar: O processo ajuda a ler A metamorfose, valendo a recíproca.

CARONE, Modesto. Lição de Kafka. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 

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