Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quarta-feira, 23 de novembro de 2011

brumas da linguagem

As imagens vividas em sonho esta noite me agrediram de maneira única. No entanto, agora que me detenho para escrever, um elo antigo e perdido nas reminiscências da infância, aquelas que uma pessoa não sabe se viu em presença ou em sonho, presentifica-se como parte inalienável do sonho desta noite. Ao me colocar diante do blog vieram-me as imagens do sonho. Ao tentar escrever sobre ele veio-me inesperado, mas tão cheio de reverberações, um elo. Há descontinuidades. Se as imagens desta noite me agrediram, talvez não tenham passado de simulacro para eu enxergar a agressão daquela outra, perdida nas brumas da infância, quando eu era bastante indefesa ― e ontem, agora me ocorre, falei em aula da criança como um ser à mercê dos adultos (pensava no imaginário, na inserção no universo da linguagem e o mais que vem a reboque), adultos que podem desenhá-la com bico de pena ou, ao contrário, ocupados demais com a sobrevivência, serem pouco dados a sutilezas. O que chamo de sutilezas? Não sei, não tenho escala segura, precisa, para aferir o que é sutil numa terra que me foi desde sempre tão selvagem, e da qual tentei em vão me proteger. Eu nunca soube se uma cena, incerta, a que assisti na remota infância foi de fato real ou sonho, nunca consegui saber, e ela sempre viveu mais ou menos interditada em mim. Como saber de coisas tão longínquas? Como saber que a linguagem não está nos traindo, ao delimitar as coisas vividas com as palavras e a sintaxe? Pode ter sido tão brutalmente real, porque estava nas brumas da linguagem, que eu preferi creditar tudo ao sonho, sonho que esta noite veio avivar coisas adormecidas. Quem sonha está dormindo, mas traz latente em si tudo o que viveu, em realidade ou sonho. A vida penetra no sonho com uma força descomunal, e agora bastaria me ater ao sonho desta noite.

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