Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


terça-feira, 13 de março de 2012

Luis Martins

A CONSULTA

― Sua aparência é saudável, mas as aparências às vezes enganam. Vamos lá ver: que é que o senhor sente?
― O que eu sinto, doutor? Não sei dizer direito. É uma espécie de  opressão, de angústia, de ansiedade...
― E o senhor pensa que eu também não sinto? Isto é normal. Normalíssimo. Que mais?
― Bem, doutor. Eu tenho insônias.
― E eu não tenho, por acaso? Pergunte ao seu vizinho se não tem também.
― Eu não me dou com meu vizinho.
― É isto: não se dá com o vizinho. Eu também não me dou com o meu. Ninguém se dá com ninguém. Mas não precisa perguntar: eu sei. Seu vizinho não consegue dormir. Ninguém consegue. Isto é normal.
― Mas, doutor...
― Eu sei: o senhor anda nervoso, excitado, angustiado... Diga-me: não sente medo? Um medo sem causa, sem nenhum motivo aparente, medo de qualquer coisa que o senhor não sabe o que é?
― Realmente... Eu estava com vergonha de dizer, mas, desde que o senhor falou, é verdade: sinto, sim.
― Ótimo! O senhor sente medo. Eu também sinto. Ótimo, torno a dizer. O senhor não tem nada, meu amigo. Está inteiramente são, uma vez que sente medo. Se não sentisse, aí sim, precisaríamos procurar as causas dessa anomalia. Talvez fosse grave.
― Sabe, doutor? Às vezes, tenho a impressão de que estou ficando neurótico.
― Claro que está! E eu não estou? E o seu vizinho não está? E todo o mundo não está? E o senhor pensa que vai ficar de fora? Por quê? Mas reflita um pouco, meu caro. O senhor vive, eu vivo, toda a gente vive num mundo anormal, sádico, doente, sanguinário, onde a regra é  a falta de regras, um mundo hediondo e tenebroso, onde o homem é cada vez mais ― e como nunca foi ― o lobo do próprio homem. Um mundo de guerras, de massacres, de hecatombes, alicerçado no ódio, na iniquidade e na violência. Acrescente a tudo isso a poluição atmosférica, a poluição sonora, a poluição moral, a degradação dos costumes, a falência dos serviços públicos, o colapso do trânsito, a morte da urbanidade, da cordialidade, da solidariedade humanas. O senhor sente angústia. É natural. O senhor tem medo. É normalíssimo. O senhor tem insônias. Como não tê-las? Meu caro cliente, vá tranquilo: o senhor não tem absolutamente nada. Passe bem. O próximo, por favor?
1973

Antologia da crônica brasileira: de Machado de Assis a Lourenço Diaféria. São Paulo: Moderna, 2005, p.103-104.

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