Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quarta-feira, 5 de setembro de 2012

um acontecimento quase vazio

Ontem vivi algo insólito. Ao abrir a carteira para pagar um kit de escovas de dente numa farmácia, tomei um susto ao não encontrar o dinheiro que deveria estar ali ― seria o secreto receito de ficar de repente sem ele? A caixa da farmácia ouviu minha exclamação, viu meu desconcerto, e deve ter engendrado lá suas hipóteses.
Tentei ainda procurar, mas o dinheiro não estava em nenhum lugar diferente do usual, de forma que alguma coisa tinha acontecido. Enquanto vasculhava mentalmente as possibilidades e pagava no débito, comecei a rememorar meus passos para tentar flagrar o momento em que o dinheiro tinha sumido. Tinha sido um dia corrido, naquela tentativa de fazer várias coisas numa viagem só, de ida e volta ao centro e à zona sul.
Fui rememorando e, de imediato, descartei a possibilidade de ter sido assaltada, afinal o primeiro lugar em que procurei o dinheiro foi a carteira, que estava dentro da bolsa, e bolsa e carteira continuavam ali. Então poderia ter simplesmente perdido, ao, na pressa, colocar o dinheiro em lugar diferente do usual. Mas em que situação eu tinha manuseado o dinheiro pela última vez antes da farmácia? Quanto dinheiro afinal estava faltando? Havia ainda quatro reais na carteira, além do cartão do metrô e do bilhete único, que garantiam transporte de volta até o centro, pelo menos.
Ainda na zona sul, veio o estalo, a única possibilidade que fazia mais sentido em relação aos meus movimentos: a atendente do caixa do lugar em que tinha almoçado havia se esquecido de me dar o troco, ou eu me esquecido de pegar. Eu não cheguei a colocar o dinheiro na carteira. Tentei me lembrar do momento do almoço, montando o prato (customizando a salada, como disse um dos funcionários) e depois estendendo a nota de cinquenta reais para a atendente do caixa, antes do meu prato ficar pronto. Nesse momento, pedi também uma água mineral. De fato, não me era totalmente certa a lembrança de ter recebido o troco, embora também fosse possível tê-lo recebido e, na distração do momento, tê-lo perdido no momento de me encaminhar para mesa. Nunca vou conseguir ter certeza, mas foi ali que perdi a grande fortuna de trinta reais.
Então, antes de aceitar que eu, tão cuidadosa, tenha me distraído e perdido de bobeira o dinheiro, ocorreu-me a ideia delirante de voltar ao estabelecimento e dizer que meu troco não tinha sido devolvido. A ideia relampejou no meu cérebro, e foi logo descartada, pela evidente inviabilidade e falta de sentido. Em adição, por que se preocupar tanto com uma (pequena) importância perdida? Explicitamente perdida? Primeiramente porque há muitas outras formas de perder dinheiro, sob a forma aparente de troca, via consumo: dinheiro vai, mercadoria vem. Segundo que é preciso aceitar que também se perde, inclusive dinheiro. Mas ainda não tinha acabado.
Já no centro da cidade veio o estalo decisivo, e que é a justificava desse texto, da narração de um fato em si sem importância. Ainda pensando na minha distração, percebi que não tinha sido tão ruim assim a atendente não me ter dado o troco. Quantas vezes dei e recebi o troco? Afinal essa tem sido a praxe, dar o troco, não deixar de revidar, de devolver na mesma moeda. Então se alguém deixa de me dar do troco, talvez esteja me fazendo um bem, assim como eu, a mim e ao outro, quando desisto de revidar, de mostrar que sou inteligente e percebi muito bem a ofensa, faça-me o favor etc. etc. Não só quero ter o desprendimento de poder deixar de dar o troco como, se puder e conseguir, dar a outra face, para não cair nas armadilhas dos acontecimentos vazios.

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