quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Alexei Bueno

ESPÓLIO

Que guardaremos disso tudo? A gema
Inconcebível entre o horror e o encanto,
Ou o ancestral silêncio, ou o ágil canto
     Que o tem por tema?

A úmida muralha morna e turva
Com que a dor nos estreita, o fim cinzento
Do dia, a rosa, o raio, ou, numa curva
    De um sonho, o vento?

BUENO, Alexei. Em sonho. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, p.406.

Miguel Marvilla

O SER INTRANSITIVO

Sim,
estou aqui (nesta esquina),
mas não como paisagem:
como um fato qualquer,
sem motivo aparente.

A causa de eu estar aqui
não é outra senão
o presente do indicativo,
coisa sem vício
ou solução.

Estou ― é quanto basta.

Qualquer outro verbo,
tempo, modo, ou lugar,
será velho
ou irregular.

Miguel Marvilla. Lição de labirinto. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1989, p.81.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

ingratidão de domingo

E no domingo, quando voltava da academia e tentava arriscar alguma fruta boa no mercadinho ordinário, dei de cara com um gato morto. Quase me estraga o almoço.

inseto

Toda a minha literatura rui diante de uma barata.

poesia

Um poema acontece quando alguma coisa da seiva que irriga a vida passa para as palavras. 

metonímia

"O amor bate na porta / o amor bate na aorta, / fui abrir e me constipei."

domingo, 23 de setembro de 2012

Nuno Júdice

POÉTICA

Evitem o modelo grego: a perfeição das linhas,
a limpidez do mármore, o azul do mar. No fundo, é
onde o corpo se deixa contaminar pelas cores
baças do amor que a luz nasce, como um caule
de inverno; e é por dentro do fruto que a chuva
apodrece que a vida insiste.

Nuno Júdice. Por dentro do fruto a chuva. São Paulo: Escrituras, 2004, p.83.

graça

O olhar esgarça o horizonte
em busca de garças
que se escondem.