sábado, 13 de outubro de 2012

Paulo Leminski

Transar bem todas as ondas
a Papai do Céu pertence,
fazer as luas redondas
ou me nascer paranaense.
A nós, gente, só foi dada
essa maldita capacidade,
transformar amor em nada.

Os melhores poemas de Paulo Leminski. 6.ed. São Paulo: Global, 2002, p.108.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

chuva antiga

A chuva que agora cai
com força
não conhece história.
Cada gota traz condensados,
em alta densidade,
o anonimato e os grandes feitos
da História.
A mesma água
a vagar em círculos pelo mundo,
sem geografia ou passado,
no eterno presente
das coisas sem vida.
Mas quanta vida em cada chuva!

"Chove longínqua e indistintamente,/ Como uma coisa certa que nos minta,/ Como um grande desejo que nos mente."

A previsão do tempo vem anunciando uma chuva imprecisa para o fim de semana que começa antecipadamente amanhã. Como sói acontecer com previsões, as oscilações dão o tom. Parece certo que amanhã choverá. Há uma semana espero por essa chuva. E antes que a secura se insinue como convergência da razão, até pelo caminho mais óbvio, há uma necessidade mais premente e pueril, quase inocente: poder escutar em paz o barulhinho da chuva. São também as saudades de Fernando Pessoa.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

dois meninos - Clarice Lispector

― Mas agora vamos brincar de outra coisa. Quero saber se o senhor é inteligente. Este quadro é concreto ou abstrato?
― Abstrato.
― Pois o senhor é burro. É concreto: fui eu que pintei, e pintei nele meus sentimentos e meus sentimentos são concretos.
― É, mas você não é todo concreto.
― Sou sim!
― Não é! Você não é todo concreto porque seu medo não é concreto. Você não é completamente concreto, só um pouco.
― Eu sou um gênio e acho que tudo é concreto.
― Ah, eu não sabia que o senhor é um pintor famoso.
― Sou. Meu nome é Bergman. Maurício Bergman, sou sueco e sou um gênio. Nota-se pela minha fisionomia, olhe: eu sofro! Agora quero saber se o senhor entende de pintura. Aquele quadro é concreto?
― É, porque se vê logo que é um mapa, pelas linhas.
― Ah, ééé? e aquele?
― Abstrato.
― Errado! Então aquele também tinha que ser concreto porque também tem linhas.
― Vou explicar ao senhor o que é concreto, é...
― ... está errado.
― Por quê?
― Por que eu não entendo. Quando eu não entendo, é porque você está errado. E agora quero saber: isto é compreto?
― O senhor quer dizer concreto.
― Não, é compreto mesmo. É porque sou um gênio e todo gênio tem que pelo menos inventar uma coisa. Eu inventei a palavra compreto. Música é compreta?
― Acho que é, porque a gente ouve, sente pelos ouvidos.
― Ah, mas o senhor não pode desenhar!
― O senhor acha que o teto é concreto?
― É.
― Mas se eu virasse essa parede e botasse ela na posição do teto, ela ia ficar uma parede-teto, e essa parede-teto ia ser concreta?
― Acho que talvez. Fantasma é concreto?
― Qual? O de lençóis?
― Não, o que existe.
― Bem... Bem, seria supostamente concreto.
― Mas é concreto ou abstrato?
― Concreto, é claro, que burrice.
No quarto ao lado a mãe parou de coser, ficou com as mãos imóveis no colo, inclinando um coração que este batia todo concreto.

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo: crônicas. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.432-433.

domingo, 7 de outubro de 2012

Miguel Marvilla

ESTE SER DA MINHA SOMBRA

Ruge o ser da minha sombra, quieta e indelével,
que se postou em mim, e eis que urge
amá-lo ou amordaçá-lo.

E eis que geme e grita e se debate.

Eu, por mim, me apavoro em que possam ouvi-lo
e em que lhe deem tato,
a este ser que me delata.

Miguel Marvilla. Lição de labirinto. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1989, p.54.

isto é simplesmente perfeito:

“As flores têm o perfume que a terra lhes dá sem ser perfumada. Assim, também nós devemos dar a nossos atos aquilo que não trazemos em nós mas de que somos realmente capazes, e que não morrerá com a nossa morte.”

Campos de Carvalho. A lua vem da Ásia. 4.ed. Rio de Janeiro: José Oympio, 2008, p.37.

a lua vem da ásia

“À noite a lua vem da Ásia, mas pode não vir, o que demonstra que nem tudo neste mundo é perfeito.”

Campos de Carvalho. A lua vem da Ásia. 4.ed. Rio de Janeiro: José Oympio, 2008, p.37.