Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

quando a dor fala...

O que fazer?

Hoje. Nas ruas do centro, o sapato novo esfolando o pé, e então reduzir os movimentos, encontrar uma farmácia, comprar band-aid. Os pés machucados, andar devagar, mesmo com o band-aid, pisar com cuidado. Nunca um sapato novo havia causado tanto desconforto em meus pés. Muito rápido o incômodo nos pés manifestando-se e aumentando, 15 minutos perdidos no centro às voltas com encontrar uma farmácia e comprar o band-aid, para colocar nos pontos machucados do pé, na própria farmácia, encontrar um canto na farmácia porque não dava mais para continuar andando.
Depois, devagar, seguir para o metrô e chegar com 15 minutos de atraso na sessão de análise na zona sul, com a sensação de dia desperdiçado e já pensando: mas era preciso mesmo ter comprado aquele sapato? Não, não era. Foi comprado no impulso, atendendo vagamente à necessidade de um sapato mais fechado para dias de chuva. No início da sessão, o assunto foram os meus pés esfolados. Retirei os sapatos durante a sessão. Por que o incômodo maior era tentar entender como um sapato que ficou tão confortável na loja, no dia em que foi comprado, pôde, em sua primeira vez de uso, produzir um desconforto tremendo, paralisante.
Sapato condenado, mas a sessão de análise não. Como a dor gera desconforto espiritual! Finda a sessão, precisava voltar o mais depressa possível para casa, para aliviar o incômodo nos pés.
Não sei quantas pessoas vi hoje dormindo na calçada, mas a lembrança dos sapatos comprados impulsivamente fazia com que eu me sentisse participando da lógica perversa e cruel que leva pessoas a dormir em calçadas. A esfoladura nos pés me enchia de culpa por aquela compra. Sempre tive poucos, bem poucos sapatos. E é claro, naturalmente, que um dos meus impulsos, quando o incômodo se intensificou, foi tirar os sapatos e seguir o caminho descalça. Mas aí me lembrava de imagens antigas que frequentavam minha noite, em que eu me apanhava descalça em público, e isso equivalia a uma exposição constrangedora de minha pessoa. Era sempre ruim, porque eu precisava me esconder do que experimentava, no sonho, como vergonha. Os sapatos vestem os pés como a roupa veste o corpo.  
Hoje, ao sentir os pés esfolados, machucados, me desconcertei, perdi o rumo. Não me lembro mais em que parte da cidade vi pessoas dormindo na calçada. No centro, certamente. Não sei o que fazer quando as vejo, não sei se devo esquecer um tempo os sapatos ― e as lojas, e o verbo comprar ― para tentar experimentar alguma forma de despojamento que me traga a delicadeza perdida. Ou então esquecer o que tiver de ser esquecido, sem abrir mão dos sapatos, para, quem sabe, renascer. 

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