quarta-feira, 27 de novembro de 2013

via crucis

“Mas a gente está perdida de qualquer jeito. Não há escapatória. Todos nós sofremos de neurose de guerra.”

Clarice Lispector. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.50.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

três letras

Lar é uma palavra que agasalha a alma — não: agasalha o corpo, que sente essa bem-aventurança como se fosse uma oferta para a alma. E quando, à noite, o último momento da consciência do dia começa a ceder ao universo do sono e da noite e o corpo já se encontra agasalhado na cama, então a palavra lar ganha toda espessura e conforto que suas três letras mal adivinham comportar.

"O homem atropela o que é mais frágil que ele"

"Por que escolhi a delicadeza como parte essencial da condição humana? Por não ser uma qualidade intrínseca do humano. Isso é justamente o que a faz necessária. A delicadeza não é causa de nossa humanidade, é efeito dela. Não é meio, é finalidade. O homem não é necessariamente delicado ― daí a urgência de se preservar, na vida social, as condições para a vigência de alguma delicadeza. Erramos ao chamar os atos que nos repugnam de desumanos. O homem, não o animal, usa de violência contra seu semelhante. O homem inventou o prazer da crueldade: o animal só mata para sobreviver. O homem destrói o que ama ― pessoas, coisas, lugares, lembranças. Se perguntarem a um homem por que razão ele se permitiu abusar de seu semelhante indefeso, ele dirá: eu fiz porque nada me impediu de fazer. O abuso da força  é um gozo ao qual poucos renunciam. Além disso, o homem é capaz de indiferença, essa forma silenciosa e obscena de brutalidade. O homem atropela o que é mais frágil que ele ― por pressa, avidez, sofreguidão, rivalidade ―, sem perceber que com isso atropela também a si mesmo.”

KEHL, Maria Rita. Delicadeza. In: NOVAES, Adauto (Org.). A condição humana: as aventuras do homem em tempos de mutações. Rio de Janeiro: Agir; São Paulo: Edições SESC, 2009, p. 453-454.