segunda-feira, 26 de julho de 2010

matéria vertente

Há certos acidentes pessoais que a gente absolutamente não entende, e mesmo lamenta. No entanto, na economia de alguma coisa que nem sempre se alcança apreender, eles estão cumprindo um papel, que a palavra "aprendizado" não dá conta. O que acontece é algo mais profundo: é como se o ser fosse reconfigurado, e uma nova disposição para a vida surgisse. Isso às vezes assusta, pois dá trabalho se reconhecer nessa nova configuração. O tempo aí entra como uma estranha matéria da tessitura fina e delicada do viver: ele age nos fazendo constantemente outros, mas não comporta um movimento linear. É precioso o que se tem em mãos - e que transformamos, por uma simplificação que cotidianamente nos obriga a uma esquematização ("dorme", "acorda", "levanta"), transformamos no que se chama vida. O que se tem em mãos é muito mais, e não conheço expressão melhor que aquela de Guimarães Rosa - "matéria vertente". Um amigo filósofo dizia se espantar com a crônica "Uma esperança", da Clarice Lispector, e que é o próprio paradoxo do marcador deste post: "pessoal intransferível". Ela está falando de uma coisa muito íntima, e no entanto a gente se reconhece naquela experiência, ou na escrita daquela experiência - não parece possível separar uma coisa da outra. Ali a matéria vertente é o próprio inseto que de repente pousa, movendo signos e pessoas ao seu redor pelo potencial metafórico que encerra - mas é também o olhar que reconhece, no inseto, a metáfora - "lá estava ela, e mais magra e verde não podia ser". Quem, depois de conhecer essa crônica, pode ficar imune à presença de uma esperança? Ainda mais se o insetinho aparecer de manhã bem cedo, num dia cheio de promessas. 

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