sábado, 26 de junho de 2010

NADA E A NOSSA CONDIÇÃO

Um dos contos mais instigantes de Primeiras estórias surpreende pelo título ― "Nada e a nossa condição": a presença da conjunção aditiva e em vez do esperado é (o verbo ser conjugado na terceira pessoa do singular do presente do indicativo). Mesmo assim, o título parece querer dizer que nossa condição é pouco mais do que nada. A obra de Guimarães Rosa, em seus aspectos mais metafísicos, trata de uma questão bem moderna ― o olhar, o conhecimento. Riobaldo, nos momentos culminantes de Grande sertão: veredas, faz-se acompanhar por um cego vidente. Em "São Marcos", o personagem principal, vítima de um vodu, passa por uma cegueira temporária, mas sua principal cegueira é existencial. No conto "O espelho", o olhar e sua construção/desconstrução são o tema, fortemente atrelado à identidade. Diz o narrador ao seu interlocutor, numa passagem que sintetiza bem a tônica conferida aos olhos, uma metonímia da olhar: "Os olhos, por enquanto, são a porta do engano; duvide deles, dos seus, não de mim." (p.66). Mais adiante, pergunta-se, após a disciplinada, árdua e obstinada desconstrução desse olhar sobre si: 

"Voltei a querer encarar-me. Nada. E, o que tomadamente me estarreceu: eu não via os meus olhos. No brilhante e polido nada, não se me espelhavam nem eles! Tanto dito que, partindo para uma figura gradualmente simplificada, despojara-me, ao termo, até a total desfigura. E a terrível conclusão: não haveria em mim uma existência central, pessoal, autônoma? Seria eu um... des-almado? Então, o que se me fingia de um suposto eu, não era mais que, sobre a persistência do animal, um pouco de herança, de soltos instintos, energia passional estranha, um entrecruzar-se de influências, e tudo o mais que na impermanência se indefine? Diziam-me isso os raios luminosos e a face vazia do espelho ― com rigorosa infidelidade. E seria assim, com todos? Seríamos não muito mais que as crianças ― o espírito do viver não passando de ímpetos espamódicos, relampejados entre miragens: a esperança e a memória." (João Guimarães Rosa. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p.70-71). 

Difícil comentar a riqueza sugestiva do trecho. A metonímia do olhar na imagem dos olhos que não enxergam nada, sequer os próprios olhos ― janelas da alma, no célebre dito atribuído a Leonardo da Vinci. O olhar que não se vê, e portanto não consegue se dizer. E aí Guimarães Rosa se encontra com Clarice Lispector, mais do que faria suspeitar o pertencimento à mesma época literária. Assunto que dá pano pra manga.

Carlos Drummond de Andrade

UM BOI VÊ OS HOMENS

Tão delicados (mais que um arbusto) e correm
e correm de um para outro lado, sempre esquecidos
de alguma coisa. Certamente, falta-lhes
não sei que atributo essencial, posto se apresentarem nobres
e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves,
até sinistros. Coitados, dir-se-ia que não escutam
nem o canto do ar nem os segredos do feno,
como também parecem não enxergar o que é visível
e comum a cada um de nós, no espaço. E ficam tristes
e no rastro da tristeza chegam à crueldade.
Toda a expressão deles mora nos olhos – e perde-se

a um simples baixar de cílios, a uma sombra.
Nada nos pelos, nos extremos de inconcebível fragilidade,
e como neles há pouca montanha,
e que secura e que reentrâncias e que
impossibilidade de se organizarem em formas calmas,
permanentes e necessárias. Têm, talvez,
certa graça melancólica (um minuto) e com isto se fazem
perdoar a agitação incômoda e o translúcido
vazio interior que os torna tão pobres e carecidos
de emitir sons absurdos e agônicos: desejo, amor, ciúme
(que sabemos nós?), sons que se despedaçam e tombam no campo
como pedras aflitas e queimam a erva e a água,
e difícil, depois disto, é ruminarmos nossa verdade.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião: 10 livros de poesia.  Rio de Janeiro: José Olympio, 1971, p.167. (Claro enigma)

quinta-feira, 24 de junho de 2010

a terceira margem do rio

Foi um professor de literatura, nos idos da ufes, que chamou a atenção para a ambiguidade do final do conto "A terceira margem do rio", de Guimarães Rosa: na semântica do enunciado, caberia tanto o substantivo "rio" quando a conjugação em primeira pessoa do verbo "rir", a que minhas circunstâncias particulares permitem acrescentar um terceiro sentido, ou uma terceira margem - Rio: "e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro - o rio." (Rosa, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p. 37).

quarta-feira, 23 de junho de 2010

o "eu" e seus desvãos

Quanto mais o tempo passa, mais me parece pertinente aquele dito da Clarice, num de seus contos mais herméticos, "O ovo e a galinha": "...'eu' é apenas uma das palavras que se desenham enquanto se atende ao telefone, mera tentativa de buscar forma mais adequada." Salvo engano, acho que entendi. Trata-se de um olhar oblíquo sobre a hipertrofia do EU que acomete as pessoas numa dada fase de suas vidas, especialmente quando estão sofrendo: "eu", "porque eu", "mas eu", "senão eu", "pois eu", "então eu"... e por aí vai - um "eu" que não dá trégua: "As galinhas prejudiciais ao ovo são aquelas que são um 'eu' sem trégua", diz a narradora no mesmo conto. Por isso gosto tanto das letras minúsculas, das coisas que podem ser ditas em minúsculas: parte da importância delas é retirada. Quando assisti ao monólogo "Simplesmente eu: Clarice Lispector", uma das partes que mais me chamou a atenção foi quando a atriz (na verdade parecia a própria Clarice, sem qualquer heresia) falava mais ou menos assim: como querem saber quem eu sou? como posso dizer quem sou eu? eu não sei quem eu sou... É pretensão querer saber quem a gente é. O "eu" é uma estranha armadilha em que inadvertidamente caímos, ao acreditarmos que há um centro organizador de nós mesmos. Nos achatamos num suposto "eu", e dele fazemos uma identidade. E aqui é bom não confundir literatura e vida - a mesma Clarice que advertia acerca dos limites do que se chama "eu" em seus textos era, de certa forma, um "eu" atormentado. Talvez por isso escrevesse com tanta propriedade sobre a questão.

terça-feira, 22 de junho de 2010

aonde vai a poupança popular?

Aonde vai a poupança popular?
Millôr Fernandes

O capitalistão americano entrou no Museu do Prado* e ficou besta diante de tanta arte. Que realidade, que vida, que grandiosidade! Os porretas desses pintores pintavam tão bem que as roupas até pareciam de vera fazenda. Depois de olhar e mais olhar, o capitalistão sentiu lá as suas limitações culturais**. Vendo que perto dele tinha um italiano fardado, à espera da gorjeta, o capitalistão botou a mão no bolso, puxou uma de cinco, deu pro homem*** e perguntou: “Quem foi que pintou isso?”. “Raffaello”, o italianão respondeu. “Bravo pittore.” “É vivo ainda?”, perguntou o capitalistão. “Não, já morreu”, respondeu o italianão. “Essa tela hoje deve estar valendo parecchi miliardi****, milhões de dólares”. “Milhões?”, boquiabriu-se o capitalistão. “E quem são esses personagens aí, pintados por um pintor tão caro?” “A virgem Maria, São José e o menino Jesus.” “Ah,” tornou o capitalistão, “e que é que estão fazendo ai?” “É a fuga pro Egito”, explicou o italianão. “Então é por isso que eles estão assim tão mal vestidos, é?” “Não. Eles sempre foram mesmo muito pobres”. “Ah,” exclamou de novo o capitalistão, “não eram nobres?” “Nobres, pô!”, respondeu o italianão. “Maria era uma mulher do povo, o marido era um carpinteiro.” “É o tal negócio,” concluiu então o capitalistão, “eu sempre digo que é por isso que a Espanha não vai pra frente: taí, vê? Uns proletários mortos de forme, gente que não tem nem o que comer, fugindo da polícia, e todo o dinheiro que têm, em vez de colocar na Bolsa, que é que eles fazem? Gastam tudo, mandando um pintor caríssimo fazer o retrato deles.”

MORAL: DESSA MANEIRA A ESPANHA JAMAIS PODERÁ ENFRENTAR O DESAFIO AMERICANO.

* Na verdade, quando ele entrou no Museu do Prado pensava que ia ver uma coleção de relíquias turísticas.
** É fatal. Qualquer coisa que a gente aprende só faz nos dar uma imensa impressão de estupidez.
*** Deu pro homem apenas economicamente, é bom esclarecer.
**** Esse italiano no Museu do Prado é uma tentativa minha de evitar qualquer forma de realismo.

Millôr Fernandes. Fábulas Fabulosas. 15. ed. Rio de Janeiro: Nórdica, 1999, p. 111-112.