A culpa que me infundiram num passado distante, já nem sei de que, está sempre tão presente que sequer lhe noto a constância, a máscara que aderiu à pele imperceptivelmente ao longo dos anos, porque ser culpada é uma forma de viver na sombra. Acho que vivo melhor na sombra, o sol faz mal à minha pele. Mas ontem me surpreendi simplesmente almoçando, como quem cumpre um antigo ritual de alimentar-se porque o corpo precisa. O corpo e um imponderável qualquer, porque alimentar-se não é um movimento automático e vulgar que se cumpre ao sabor do instinto. E então, naquele instante fugaz, consegui perceber o quanto a culpa tem estado sempre comigo, paralisando, imobilizando, envenenando. Envenenando o alimento que como. Há outros venenos e envenenadores, mas a imagem do alimento é o bastante: comer sem culpa foi um difícil aprendizado, e não é casual que a percepção da culpa, tal qual uma iluminação epifânica, tenha se dado enquanto comia com muito gosto a comida boa que escolhi livremente comer. Estava nas imediações do Jardim Botânico, lugar cuja densidade é propícia para experimentar sensações contraditórias. Ir semanalmente ao bairro Jardim Botânico para sessões de análise que parecem não conhecer qualquer prazo de validade tornou-se, agora percebo, uma forma de condensar miríades de movimentos. Vou, entrevejo o Jardim Botânico, dou meia volta e retorno. Mas uma hora sei que tudo vai acabar, como aqueles grandes ciclos da vida que simplesmente chegam ao fim.
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