terça-feira, 4 de outubro de 2011

enganos

As palavras armam sentenças, círculos concêntricos potencialmente indeléveis envolvendo cada ser. Mas existe um lugar ― brecha ― onde o milagre das letras alinhadas uma após outra dá ensejo à vida. É este o único lugar que interessa à criação. Um verso, colhido ao acaso: “A verdade da morte não nos serve”. O que é a verdade da morte? É cultivar a vida em função da morte? É cultivar a morte pensando cultivar a ilusão da vida? O poeta parece conhecê-la: o próprio modo com que o verso é enunciado informa, pela noção de pressuposição, que o poeta está dispensando algo que visitou: “não nos serve”. A morte, porém, não deixa de ser norte para a vida. Ninguém consegue esquecer que finará um dia, embora o correr da vida faça disso uma espécie de certeza adormecida. Então o verso parece querer dizer outra coisa: o que quer que receba o nome de criação precisa buscar seu norte em paragens distintas da morte ― e da própria verdade. Talvez a própria expressão “verdade da morte” seja um indício de que a morte está nisso que se chama verdade, quando deixa de ser busca para tornar-se formulário. O que é a verdade? Para além desta pergunta tão enigmática quanto o que nela se pergunta, haverá trilho seguro que leve até a verdade? Alguém poderia responder, sem titubear, à pergunta que Alice, em sonho, dirige à sua gata: “Vamos, Dinah, conte-me a verdade: algum dia você já comeu um morcego?” É o próprio narrador quem adverte, um pouco antes, quando Alice baralha as perguntas: como não sabia responder a nenhuma delas, o jeito como as fazia não tinha importância. O jeito com que uma pergunta é feita afeta sua resposta. 

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