sábado, 24 de março de 2012

nunca, jamais, trair a poesia: ou sim, pela vida?

“A tragédia do humano tem a ver com a incapacidade de não atingir Deus. Nunca chegamos a saber. Quando se procura muito, se estuda muito, quando se chega lá, vê-se que não é nada daquilo. (...) Chama-se a isso o pecado original. A árvore do saber... Mas o Homem não soube nada, só soube o mal. Foi castigado. Ninguém consegue saciar o desejo. É o cerne de tudo.”

Ana Hatherly, A idade da escrita e outros poemas, p.142.

murilo mendes: o tigre

O TIGRE

O tigre, segundo Valéry, é um fato grandioso, uma vera instituição, um poder organizadíssimo, uma espécie de razão do estado, de monarquia totalitária; o animal absoluto. Por estes e outros motivos afins já se vê que le tigre ce n’est pas moi.
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O tigre, mamífero (sic) da família real dos Felídios, calcula seus atos com rigor extremo; não se passa a limpo, não se desdiz, nem se corrige. O tigre é autocronometrado. Mesmo quando opera durante a noite opera diurno.
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William Blake maravilha-se com razão, perguntando-se que olho imortal ousou a terrível simetria do tigre; e se o tigre poderia agradar ao próprio Deus que criou o Cordeiro.
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O tigre devorará tua metáfora antes do seu acabamento. O tigre não espera o homem. Os deuses esperam o tigre.
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O tigre, compasso em forma de tigre.
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Não há tigre vice: o leão é vice-tigre.
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O tigre: tão bem organizado que até os tigres de papel fazem-se tremer.
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Agredirei a majestade desse animal definitivo, aludindo à tigricidade da dupla Stalinhitler?
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O tigre, esse cosmotigre.
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O tigre é belo. Inadiável. Sibilino. Calmo. Intransferível.
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A tigresa eternidade avança para mim sob a forma de uma tesoura: Átropos.

MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.981.

sexta-feira, 23 de março de 2012

sono lento

Algumas coisas antigas do blog volta e meia são apagadas. Cumpriram seu papel de enunciação. Isso basta.

quinta-feira, 22 de março de 2012

João Cabral de Melo Neto

NA MORTE DE JOAQUIM CARDOZO

Creio que Joyce é que dizia
que a Irlanda dele se comia

comendo os filhos, como a porca
que as crias melhores devora.

Estamos tão desenvolvidos
que já podemos esse estilo

de fazer Dublin, Irlanda, Europa?
e um novo imitá-las, em porca?


MELO NETO, João Cabral de. Serial e antes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.122.

humildade

“Como aqueles que, no convento, varrem o chão e lavam a roupa, servindo sem a glória da função maior, meu trabalho é o de viver os meus prazeres e as minhas dores. É necessário que eu tenha a modéstia de viver.”

Clarice Lispector, “O ovo e a galinha”

a alegria que se tem

A alegria é uma condição incomum, porque depende de vínculos efetivos com uma infância saudável e que tenha sido infância o suficiente para legar, vida afora, certo frescor de inocência e espanto. A alegria é um pacto profundo com o bem e tudo o que ele representa. O bem, no sentido de uma disposição genuína para a vida, para o que é vivo, o que quer viver, para sentimentos como amor e amizade. O que é querer o bem? É, em camadas por vezes inacessíveis, lutar por ele, estar a seu lado, saber que o caminho a ser trilhado é duro, difícil e penoso. Querer o bem é já trazê-lo junto a si, e isso se transforma em alegria. Mas como é difícil romper o diamante bruto do bem para chegar à alegria. 

quarta-feira, 21 de março de 2012

Carlos Drummond de Andrade

O VERBO MATAR

Quem se espanta com o espetáculo de horror diversificado que o mundo de hoje oferece faria bem se tivesse o dicionário como livro de leitura diurna e noturna. Pois ali está, na letra M, a chave do temperamento homicida, que convive no homem com suas tendências angélicas, e convive em perfeita harmonia de namorados.
O consulente verá que matar é verbo copiosamente conjugado por ele próprio. Não importa que cultive a mansuetude, a filantropia, o sentimentalismo; que redija projetos de paz universal (...) e considere abominações o assassínio e o genocídio. Vive matando.
A ideia de matar é de tal modo inerente ao homem que, à falta de atentados sanguinolentos a cometer, ele mata calmamente o tempo. Sua linguagem o trai. Por que não diz, nas horas de ócio e recreação ingênua, que está vivendo o tempo? Prefere matá-lo.
Todos os dias, mais de uma vez, matamos a fome, em vez de satisfazê-la. Não é preciso lembrar como um número infinito de pessoas perpetra essa morte: através da morte efetiva de rebanhos inteiros, praticada tecnicamente em lugar de horror industrial, denominado matadouro. Aí, matar já não é expressão metafórica: é matar mesmo.
O estudante que falta à classe confessa que matou a aula, o que implica matança do professor, da matéria e, consequentemente, de parte do seu acervo individual de conhecimento, morta antes de chegar a destino. No jogo mais intelectual que se conhece, pretende-se não apenas vencer o competidor, mas liquidá-lo pela aplicação de xeque-mate. Não admira que, nas discussões, o argumento mais poderoso se torne arma de fogo de grande eficácia letal: mata na cabeça.
(...)
Se a linguagem espelha  o homem, e se o homem adorna a linguagem com tais subpensamentos de matar, não admira que os atos de banditismo, a explosão intencional de aviões, o fuzilamento de reféns, o bombardeio aéreo de alvos residenciais, (...) as bombas A e H, a variada tragédia dos dias modernos se revele como afirmação cotidiana do lado perverso do ser humano. Admira é que existam a pesquisa de antibióticos, Cruz Vermelha Internacional, Mozart, o amor.

ANDRADE, Carlos Drummond de. De notícias & não notícias faz-se a crônica. Rio de Janeiro: Record, 1987, p.65-67.

alma

"Poucos homens exploram sua alma" - Murilo Mendes.

escrita

A escrita é o único território onde ainda se respira liberdade.

terça-feira, 20 de março de 2012

Jorge de Lima: Livro de Sonetos

Era um tempo de olhares alternados
em que dois entes ou anjos, curiosos
me fitavam das trevas ou de cima,
dias e noites, duros, obstinados.

Livraram-me dos seres entranhados
em nós, uns mansos e outros tumultuosos
transmitidos de sangues e de climas,
da vida extinta dos antepassados.

Esperaram que me fizesse poeta
para dissimular seus greves rostos
e me espreitarem hoje disfarçados.

E eis que deixando essa órbita secreta:
lançam ao poema risos e desgostos,
gritam em torno, chamam-me dos lados.

Jorge de Lima. Poemas negros. Rio de Janeiro: Record, 2007, p.146.

domingo, 18 de março de 2012

Rainer Maria Rilke: Sonetos a Orfeu

II.20

Quanto espaço entre estrelas distantes!
Mais distante está o que aqui se aprende.
Alguém, por exemplo, um menino... outro adiante,
afastados entre si incompreensivelmente.

Palmo a palmo o destino mede nosso ser,
embora nos pareça estranho que assim seja.
Pensa: quantos palmos entre o homem e a mulher,
quanto mais o evita, mais ela o deseja.

Tudo é distância. Não se fecha a circunferência.
Vê sobre a mesa os peixes na travessa,
olhos frios na cara gelada.

Peixes são mudos... achava a ciência.
Mas afinal há um local, no qual se expressa
a língua dos peixes, por eles não falada?

RILKE, Rainer Maria. Os sonetos a Orfeu. Elegias de Duíno. Trad. Karlos Rischbieter e Paulo Garfunkel. Rio de Janeiro: Record, 2002, p.104-105. Vale a pena cotejar com a tradução de Augusto de Campos.

saudades de clarice lispector

VIVER

Ele teve a sensação de ser. Não poderia explicar, tão profundo, nítido e largo que era. A sensação de ser era uma visão aguda, calma e instantânea de se ser o próprio representante da vida e da morte. Então, ele não quis dormir, para não perder a sensação da vida.

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.365.

Manuel Bandeira

TEMAS E VOLTAS

Mas para quê 
Tanto sofrimento,
Se nos céus há o lento
Deslizar da noite?

Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se lá fora o vento
É um canto na noite?

Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se agora, ao relento,
Cheira a flor da noite?

Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se o meu pensamento
É livre na noite?

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 20.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p.192.