sábado, 28 de setembro de 2013

Ricardo Reis

Pobres de nós que perdemos quanto
Sereno e forte nos dava a vida
        O único modo
O único humano de a ter...
        Pobres de nós
Crianças tristes que mal se lembram
De pai e mãe
E andam sozinhas na vida cega
        Sem ter carinhos
        Nem saber nada
De aonde vamos pela floresta,
Nem donde viemos pela estrada fora…
E somos tristes, e somos velhos,
        E fracos sempre…
        Sem que nos sirva.

Poesia completa de Ricardo Reis. São Paulo: Companhia de Bolso, 2005, p.33.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

aflição moderna

Você está numa fila qualquer, via de regra de supermercado. A pessoa que está atrás de você dá, de repente, o ar de sua presença, através de um leve e inconveniente esbarrão, ou empurrão, suficiente para você sentir a presença física da pessoa e traduzi-la como pressão para andar mais depressa. Mas se você, incomodado com aquele contato súbito e indesejado, cede à pressão, arrisca-se a repetir o mesmo gesto com quem está na frente. Você então move-se um pouco, o suficiente para se proteger da pressão exercida por quem está atrás, mas a pessoa entende então que a fila andou, e anda também, mantendo a pressão para que você continue a andar, a avançar, para que chegue logo ao caixa, passe logo os produtos que veio comprar, pague rápido, porque você mal termina de fazer cada uma dessas etapas e quem está atrás já está ocupando o lugar que você achou que era seu na fila do supermercado. Então é desconfortável saber, sentir, que o lugar ilusório que se ocupa no mundo não é necessariamente a possibilidade de estar em paz, porque parece que ninguém está em paz.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

o bem mais precioso

Imaginar a possibilidade da perfeição não é alucinação. A liberdade, bem supremo, é a perfeição.

domingo, 22 de setembro de 2013

O que é a vida espiritual de alguém?

Seria aquilo que, tradicionalmente, se opõe à matéria? Então seria mais por tradição linguística — ou conceitual — que se continua a falar em vida espiritual. Mas deixando essa oposição de lado, é difícil não admitir que há uma dimensão espiritual da existência, com necessidades próprias e pouco conhecidas, talvez porque sejam menos intercambiáveis que as demais, mais visíveis e evidentes por si. Reconhecer em si demandas espirituais é, de alguma forma, perceber-se à parte, ainda que se saiba pertencendo a uma maioria. Há as que são canalizadas e satisfeitas nas religiões. E há aquelas que não encontram refúgio ou sentido na religião. Mas continuam sendo espiritualidade.

o silêncio, esse ancestral do homem

Tantos nomes que não há para dizer o silêncio —

a combustão interior do tempo;
uma maçã cortada, uma pomba de éter:
o pensamento.
Não te chames mais, adolescente
comendo uvas negras.
Abres a camisa em que escutas todas as mãos do vento.
E vês atrás de ti as máquinas resolutas
de fabricar as formas rápidas,
e convulsas, do esquecimento.
Isto no ar há-de ficar como frio limpo.
O meu nome parou diante
do instante mortal que o guardara.

Evapora-se a roupa, mas não sinto.

Herberto Helder. Ou o poema contínuo. São Paulo: A Girafa, 2006, p.247.