Mário Quintana (a falsa verdade desses versos não esconde o pertencimento do poeta, num sutil jogo de contrastes)

Eu nada entendo da questão social.
Eu faço parte dela, simplesmente...
E sei apenas do meu próprio mal,
Que não é bem o mal de toda a gente,

Nem é deste Planeta... Por sinal
Que o mundo se lhe mostra indiferente!
E o meu Anjo da Guarda, ele somente,
É quem lê os meus versos afinal...

E enquanto o mundo em torno se esbarronda,
Vivo regendo estranhas contradanças
No meu vago País de Trebizonda...

Entre os Loucos, os Mortos e as Crianças,
É lá que eu canto, numa eterna ronda,
Nossos comuns desejos e esperanças!...

Mário Quintana. Canções seguido de Sapato florido e A rua dos cataventos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p.193.

garrafas ao mar: a víbora manda lembranças

Enquanto assistia ao documentário sobre Joel Silveira, lembrei-me de uma crônica dele lida já faz tempo ― e a memória, seletiva, guardou resquícios desta e mais duas ou três ― em que ele relatava estar andando sozinho num frio dezembro europeu (não me recordo a cidade, e talvez seja só minha a impressão de que era Natal) e deparou-se, de repente, num vitrine de livraria, com um livro da Clarice Lispector ― creio que Perto do coração selvagem, se a memória estiver me ajudando ―, e então ele sentiu seu coração subitamente aquecido, por aquele encontro, por encontrar alguém familiar na fria distância em que se encontrava, por encontrar uma garrafa lançada ao mar. Escrever é imperioso ― este é o maior testemunho que ficou da brilhante geração modernista de cronistas e repórteres brasileiros, porque a literatura era uma espécie de morada, parada obrigatória deles e delas.

Viola Enluarada (Marcos e Paulo Sérgio Valle)

Marcos Valle e Milton Nascimento (aqui a curiosa história desta canção, em que se pode perceber um sutil teor de contestação ao momento político de então)

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Mário Quintana: "Andam por tudo signos diversos / Impossíveis da gente decifrar"

Vontade de escrever quatorze versos...
Pobre do Poeta!... É só pra disfarçar...
Andam por tudo signos diversos
Impossíveis da gente decifrar.

Quem sabe lá que estranhos universos
Que navios começaram a afundar...
Olha! os meus dedos, no nevoeiro imersos,
Diluíram-se... Escusado navegar!

Busca perdida que não sabe o porto,
Carregada de cântaros vazios...
Oh! dá-me a tua mão, Amigo Morto!

Que procuravas, solitário e triste?
Vamos andando entre os nevoeiros frios...
Vamos andando... Nada mais existe!...

Mário Quintana. Canções seguido de Sapato florido e A rua dos cataventos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p.210. 

Fernando Pessoa

Ninguém me disse quem eu era, e eu
A ninguém perguntei.
Vi-me vivendo sob um vasto céu
E senti uma lei.

A informe natureza, desdobrada
Em terra e rio e mar,
Deu-me um indício, como que uma estrada
Para eu caminhar.

Mas o caminho era para quem sou,
E tinha por seu fim
O saber que o caminho por que vou
Está dentro de mim.

Fernando Pessoa. Poesia 1931-1935. São Paulo, Companhia das Letras, 2009, p.327.

antes era perfeito

Ontem, depois da consulta ao bem-humorado médico ― não adianta, é inútil ―, e também porque ela havia sido assunto na sessão de análise: “Ter nascido me estragou a saúde.” (Clarice Lispector. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.408).

vida

Missão comprida.
Missão cumprida?

deus hipotético (por luis fernando verissimo)


Na crônica de Luis Fernando Verissimo publicada pelo O Globo no último domingo, “Deus hipotético”, além da coragem e humor habituais, chama atenção o trecho: “Há aquela parábola do Dostoievski sobre o encontro do Grande Inquisidor com Jesus Cristo, que volta à Terra ― o filho da hipótese tornado homem ― para salvar a humanidade outra vez, já que da primeira vez não deu certo. Os dois conversam na cela onde Cristo foi metido por estar perturbando a ordem pública, e o Grande Inquisidor não demora a perceber que a pregação do homem ameaçará, antes de mais nada, a própria Igreja, a religião institucionalizada e os privilégios do poder.” Uma ideia perversa e atravessou o pensamento: se a ficção não seria também de um cristianismo genuíno, ou seja, era uma vez um homem, dito filho de Deus, que tentou pregar a justiça social, mas isso não deu muito certo, e este homem acabou morto, e então é até possível lutar contra um mundo socialmente injusto, mas trata-se de uma luta vã... Verissimo não citou Dostoievski em vão.

sobre os mortos

Durante um dos passeios em Paraty, o guia explicou que a praça principal da cidade foi construída sobre um cemitério desativado. Então ele passou a explicar que nem todos os mortos foram transferidos para o novo cemitério, restando ali, sob solo frequentado por ávidos vivos. Os guias, mesmo quando pensar estar divertindo, acabam contando a história da cidade, marcada por inúmeras segregações.
atual cemitério da cidade

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

companhia de viagem (a extrema precisão de um poema)

CANÇÃO DE VIDRO

E nada vibrou...
Não se ouviu nada...
Nada...

Mas o cristal nunca mais deu o mesmo som.

Cala, amigo...
Cuidado, amiga...
Uma palavra só
Pode tudo perder para sempre...

E é tão puro o silêncio agora!

Mário Quintana. Canções seguido de Sapato florido e A rua dos cataventos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p.20.