Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 5 de abril de 2014

Milguel Marvilla

INSTANTE

Estamos ressurgindo.
Estou aberto e pleno neste instante irrepetível.
O mundo acontece, estou vivo,
preparo minha permanência:
repito meu papel mil vezes diante do espelho.
Acompanho a linha que meus olhos produzem à cata
de uma estrela há muito morta
e sei que sou, de novo, real.

Este brilho em teu olhar, no entanto, instaura a dúvida:
um de nós é sonho. Mas qual?

Miguel Marvilla. Lição de labirinto. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1989, p.87.

Glauber Rocha - De Lá Pra Cá

terça-feira, 1 de abril de 2014

"escravos de jó", canção censurada do álbum "milagre dos peixes", gravada posteriormente como "caxangá" por elis regina

Milton Nascimento e Fernando Brant
  
Sempre no coração 
haja o que houver 
a fome de um dia poder 
morder a carne dessa mulher 

Veja bem meu patrão 
como pode ser bom 
você trabalharia no sol 
e eu tomando banho de mar 

Luto para viver 
vivo para morrer 
enquanto a minha morte não vem 
eu vivo de brigar contra o rei 

Em volta do fogo 
todo o mundo abrindo jogo 
conta o que tem pra contar 
casos e desejos 
coisas dessa vida e da outra 
mas nada de assustar 
quem não é sincero 
sai da brincadeira correndo 
pois pode se queimar, queimar 

Saio do trabalh-ei 
volto pra cas-ei 
não lembro de canseira maior 
em tudo é o mesmo suor  

Murilo Mendes

A VISIBILIDADE

Passar ignorado dos homens, das palavras,
Ignorado das águas, do demônio,
Ignorado dos personagens da história,
Ignorado até de Deus,
Até dos pássaros, das pedras.
Mas a luz se desfaz em vaia.
Os demônios mostram o seio em arco
— Arco de sua vitória exclusiva —,
As águas exigem um carinho,
Do contrário te afogarão.
As pedras exigem teu amor
— Vives em cima delas —
Do contrário te apedrejarão,
Apedrejarão
Quem quiser viver no ar.

MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.233.

segunda-feira, 31 de março de 2014

caxangá (milton nascimento & fernando brant): por boca livre

31 de março de 1964: 50 anos

Paul Géraldy

MEDITAÇÃO

A gente começa a amar
Por simples curiosidade,
Por ter lido num olhar
Certa possibilidade.

E como, no fundo, a gente
Se quer muito bem,
Ama quem a ama somente
Pelo gosto igual que tem.

Pelo amor de amar começa
A repartir dor por dor.
E se habitua depressa
A trocar frases de amor.

E, sem pensar, vai falando
De novo as que já falou…
E então continua amando
Só porque já começou.


Poetas de França. Trad. Guilherme de Almeida. 5.ed. São Paulo: Babel, s/d, p.161.

domingo, 30 de março de 2014

Murilo Mendes

"A caligrafia das constelações é claríssima."

o poder

Michel Foucault. — Esta dificuldade — nosso embaraço em encontrar as formas de luta adequadas — não virá de que ainda ignoramos o que é o poder? Afinal de contas, foi preciso esperar o século XIX para saber o que era a exploração, mas talvez ainda não se saiba o que é o poder. E Marx e Freud talvez não sejam suficientes para nos ajudar a conhecer esta coisa tão enigmática, ao mesmo tempo visível e invisível, presente e oculta, investida em toda parte, que se chama poder. A teoria do Estado, a análise tradicional dos aparelhos de Estado sem dúvida não esgotam o campo de exercício e de funcionamento do poder. Existe atualmente um grande desconhecido: quem exerce o poder? Onde o exerce? Atualmente se sabe, mais ou menos, quem explora, para onde vai o lucro, por que mãos ele passa e onde ele se reinveste, mas o poder... Sabe-se muito bem que não são os governantes que o detêm. Mas a noção de "classe dirigente" nem é muito clara nem muito elaborada. "Dominar", "dirigir", "governar", "grupo no poder", "aparelho de Estado", etc., é todo um conjunto de noções que exige análise. Além disso, seria necessário saber até onde se exerce o poder, através de que revezamentos e até que instâncias, frequentemente ínfimas, de controle, de vigilância, de proibições, de coerções. Onde há poder, ele se exerce. Ninguém é, propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direção, com uns de um lado e outros do outro; não se sabe ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui.