Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
sábado, 20 de outubro de 2012
acidente
Coração batendo surdo. É quando o coração, ao bater, parece
estar esbarrando em alguma coisa. Como se estivesse precisando de mais espaço.
Acidente da semana: uma garrafa de vinho se espatifou no chão do supermercado
quando passei estabanada, esbarrando o carrinho. Estava em local propício a
acidentes, a garrafa. Paralisia momentânea,
até me situar diante da garrafa de vinho espatifada no chão, com o vinho
derramado. A enorme incompetência mesmo para quebrar acidentalmente uma garrafa
de vinho no supermercado. O líquido colorido derramado. Incompetência ainda maior
para lidar com esse bater surdo, o vinho tinto de contidas emoções, derramadas
acidentalmente no coração. Esbarrei onde não devia, distraída estava.
poesia
“Quando você põe em palavras seu “eu” mais puro, ele
se transforma em poesia.” (trecho da resposta dada por um aluno do ensino fundamental numa avaliação de língua e literatura)
Herberto Helder: "Eu procuro dizer como tudo é outra coisa"
Minha cabeça estremece com todo o esquecimento.
Eu procuro dizer como tudo é outra coisa.
Falo, penso.
Sonho sobre os tremendos ossos dos pés.
É sempre outra coisa, uma
só coisa coberta de nomes.
E a morte passa de boca em boca
com a leve saliva,
com o terror que há sempre
no fundo informulado de uma vida.
Eu procuro dizer como tudo é outra coisa.
Falo, penso.
Sonho sobre os tremendos ossos dos pés.
É sempre outra coisa, uma
só coisa coberta de nomes.
E a morte passa de boca em boca
com a leve saliva,
com o terror que há sempre
no fundo informulado de uma vida.
Sei que os campos imaginam as suas
próprias rosas.
As pessoas imaginam seus próprios campos
próprias rosas.
As pessoas imaginam seus próprios campos
de rosas. E às vezes estou na frente dos
campos
como se morresse;
outras, como se agora somente
eu pudesse acordar.
como se morresse;
outras, como se agora somente
eu pudesse acordar.
Por vezes tudo se ilumina.
Por vezes canta e sangra.
Eu digo que ninguém se perdoa no tempo.
Que a loucura tem espinhos como uma garganta.
Eu digo: roda ao longe o outono,
Por vezes canta e sangra.
Eu digo que ninguém se perdoa no tempo.
Que a loucura tem espinhos como uma garganta.
Eu digo: roda ao longe o outono,
e o que é o outono?
As pálpebras batem contra o grande dia masculino
do pensamento.
As pálpebras batem contra o grande dia masculino
do pensamento.
Deito coisas vivas e mortas no espírito da
obra.
Minha vida extasia-se como uma câmara de tochas.
Minha vida extasia-se como uma câmara de tochas.
― Era uma casa ― como direi? ― absoluta.
Eu jogo, eu juro.
Era uma casinfância.
Sei como era uma casa louca.
Eu metias as mãos na água: adormecia,
relembrava.
Os espelhos rachavam-se contra a nossa mocidade.
Era uma casinfância.
Sei como era uma casa louca.
Eu metias as mãos na água: adormecia,
relembrava.
Os espelhos rachavam-se contra a nossa mocidade.
Apalpo agora o girar das brutais,
líricas rodas da vida.
Há no esquecimento, ou na lembrança
total das coisas,
uma rosa como uma alta cabeça,
um peixe como um movimento
rápido e severo.
Uma rosapeixe dentro da minha ideia
desvairada.
Há copos, garfos inebriados dentro de mim.
― Porque o amor das coisas no seu
tempo futuro
é terrivelmente profundo, é suave,
devastador.
líricas rodas da vida.
Há no esquecimento, ou na lembrança
total das coisas,
uma rosa como uma alta cabeça,
um peixe como um movimento
rápido e severo.
Uma rosapeixe dentro da minha ideia
desvairada.
Há copos, garfos inebriados dentro de mim.
― Porque o amor das coisas no seu
tempo futuro
é terrivelmente profundo, é suave,
devastador.
As cadeiras ardiam nos lugares.
Minhas irmãs habitavam ao cimo do movimento
como seres pasmados.
Às vezes riam alto. Teciam-se
em seu escuro terrífico.
A menstruação sonhava podre dentro delas,
à boca da noite.
Cantava muito baixo.
Parecia fluir.
Rodear as mesas, as penumbras fulminadas.
Chovia nas noites terrestres.
Eu quero gritar paralém da loucura terrestre.
― Era húmido, destilado, inspirado.
Minhas irmãs habitavam ao cimo do movimento
como seres pasmados.
Às vezes riam alto. Teciam-se
em seu escuro terrífico.
A menstruação sonhava podre dentro delas,
à boca da noite.
Cantava muito baixo.
Parecia fluir.
Rodear as mesas, as penumbras fulminadas.
Chovia nas noites terrestres.
Eu quero gritar paralém da loucura terrestre.
― Era húmido, destilado, inspirado.
Havia rigor. Oh, exemplo extremo.
Havia uma essência de oficina.
Uma matéria sensacional no segredo das fruteiras,
com as suas maçãs centrípetas
e as uvas pendidas sobre a maturidade.
Havia a magnólia quente de um gato.
Gato que entrava pelas mãos, ou magnólia
que saía da mão para o rosto
da mãe sombriamente pura.
Ah, mãe louca à volta, sentadamente
completa.
As mãos tocavam por cima do ardor
a carne como um pedaço extasiado.
Era uma casabsoluta ― como
direi? ― um
sentimento onde algumas pessoas morreriam.
Demência para sorrir elevadamente.
Ter amoras, folhas verdes, espinhos
com pequena treva por todos os cantos.
Nome no espírito como uma rosapeixe.
direi? ― um
sentimento onde algumas pessoas morreriam.
Demência para sorrir elevadamente.
Ter amoras, folhas verdes, espinhos
com pequena treva por todos os cantos.
Nome no espírito como uma rosapeixe.
― Prefiro enlouquecer nos corredores arqueados
agora nas palavras.
Prefiro cantar nas varandas interiores.
Porque havia escadas e mulheres que paravam
minadas de inteligência.
agora nas palavras.
Prefiro cantar nas varandas interiores.
Porque havia escadas e mulheres que paravam
minadas de inteligência.
O corpo sem rosáceas, a linguagem
para amar e ruminar.
O leite cantante.
para amar e ruminar.
O leite cantante.
Eu agora mergulho e ascendo como um copo.
Trago para cima essa imagem de água interna.
― Caneta do poema dissolvida no sentido
primacial do poema.
Ou o poema subindo pela caneta,
Trago para cima essa imagem de água interna.
― Caneta do poema dissolvida no sentido
primacial do poema.
Ou o poema subindo pela caneta,
atravessando seu próprio impulso,
poema regressando.
Tudo se levanta como um cravo,
uma faca levantada.
Tudo morre o seu nome noutro nome.
poema regressando.
Tudo se levanta como um cravo,
uma faca levantada.
Tudo morre o seu nome noutro nome.
Poema não saindo do poder da loucura.
Poema como base inconcreta de criação.
Ah, pensar com delicadeza,
imaginar com ferocidade.
Porque eu sou uma vida com furibunda
melancolia,
com furibunda concepção. Com
alguma ironia furibunda.
Poema como base inconcreta de criação.
Ah, pensar com delicadeza,
imaginar com ferocidade.
Porque eu sou uma vida com furibunda
melancolia,
com furibunda concepção. Com
alguma ironia furibunda.
Sou uma devastação inteligente.
Com malmequeres fabulosos.
Ouro por cima.
A madrugada ou a noite triste tocadas
em trompete. Sou
alguma coisa audível, sensível.
Um movimento.
Cadeira congeminando-se na bacia,
feita o sentar-se.
Ou flores bebendo a jarra.
O silêncio estrutural das flores.
E a mesa por baixo.
A sonhar.
Com malmequeres fabulosos.
Ouro por cima.
A madrugada ou a noite triste tocadas
em trompete. Sou
alguma coisa audível, sensível.
Um movimento.
Cadeira congeminando-se na bacia,
feita o sentar-se.
Ou flores bebendo a jarra.
O silêncio estrutural das flores.
E a mesa por baixo.
A sonhar.
Herberto Helder. Ofício cantante. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009, p.109-113.
sexta-feira, 19 de outubro de 2012
Luís Vaz de Camões
Ditoso seja aquele que somente
Se queixa de amorosas esquivanças;
Pois por elas não perde as esperanças
De poder nalgum tempo ser contente.
Ditoso seja quem, estando ausente,
Não sente mais que a pena das lembranças,
Porque, inda mais que se tema de mudanças,
Menos se teme a dor quando se sente.
Ditoso seja, enfim, qualquer estado,
Onde enganos, desprezos e isenção
Trazem o coração atormentado.
Mas triste quem se sente magoado
De erros em que não pode haver perdão,
Sem ficar na alma a mágoa do pecado.
Poesia fora da estante, vol. 2. Porto Alegre:
Projeto, 2002.
quinta-feira, 18 de outubro de 2012
Cacaso
QUEM DE
DENTRO DE SI NÃO SAI
VAI MORRER SEM AMAR NINGUÉM
VAI MORRER SEM AMAR NINGUÉM
A parte perguntou para a parte qual delas
é menos parte da parte que se descarte.
é menos parte da parte que se descarte.
Pois
pasmem: a parte respondeu para a parte
que a parte que é mais — ou menos — parte
é aquela que se
que a parte que é mais — ou menos — parte
é aquela que se
reparte.
CACASO. Lero-lero. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p.122.
terça-feira, 16 de outubro de 2012
t r a v e s s i a
Em matéria de desertos, não sei se há outro meio de
enfrentá-los além da humildade. Naturalmente que não se dispensa a força, a
coragem, a perspicácia. Mas é que os desertos, como creio ter lido em Borges,
equiparam-se aos labirintos.
DECLARAÇÃO DE AMOR - Clarice Lispector
Esta
é uma confissão de amor: amo a língua portuguesa. Ela não é fácil. Não é
maleável. E, como não foi profundamente trabalhada pelo pensamento, a sua
tendência é a de não ter sutilezas e de reagir às vezes com um verdadeiro
pontapé contra os que temerariamente ousam transformá-la numa linguagem de
sentimento e de alerteza. E de amor. A língua portuguesa é um verdadeiro
desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve tirando das coisas e das
pessoas a primeira capa de superficialismo.
Às
vezes ela reage diante de um pensamento mais complicado. Às vezes se assusta
com o imprevisível de uma frase. Eu gosto de manejá-la – como gostava de estar
montada num cavalo e guiá-lo pelas rédeas, às vezes lentamente, às vezes a
galope.
Eu
queria que a língua portuguesa chegasse ao máximo nas minhas mãos. E este
desejo todos os que escrevem têm. Um Camões e outros iguais não bastaram para
nos dar para sempre uma herança de língua já feita. Todos nós que escrevemos
estamos fazendo do túmulo do pensamento
alguma coisa que lhe dê vida.
Essas
dificuldades, nós as temos. Mas não falei do encantamento de lidar com uma
língua que não foi aprofundada. O que recebi de herança não me chega.
Se eu
fosse muda, e também não pudesse escrever, e me perguntassem a que língua eu
queria pertencer, eu diria: inglês, que é preciso e belo. Mas como não nasci
muda e pude escrever, tornou-se absolutamente claro para mim que eu queria
mesmo era escrever em português. Eu até queria não ter aprendido outras
línguas: só para que a minha abordagem do português fosse virgem e límpida.
LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo: crônicas. Rio de
Janeiro: Rocco, 1999, p.100-101.
segunda-feira, 15 de outubro de 2012
domingo, 14 de outubro de 2012
dessemelhanças
Apenas
num plano abstrato somos todos iguais, e isso já seria suficiente para que a
diversidade humana fosse entendida como condição de sobrevivência da espécie. A
tentativa de abolir as diferenças, tornando-nos insuportavelmente semelhantes,
constrói o fascismo dos valores padronizados, estereotipados. Na própria
palavra “valor”, a armadilha. “Nenhuma acusação a quem não quer perder seu mundo (qualquer
disputa cansa mesmo), mas simplesmente outra velocidade, outros gostos.”
Lino Machado
BESTIÁRIO
Homens-pomba
podem
ganhar um
Nobel
porém
eles nem
sempre
conseguem
impor
alguma
paz.
Homens-pomba:
quase nunca
implodem
injunções
e suspeitos
edifícios
inter
nacionais.
Homens-pomba,
ao menos
não se
percam
nos
percalços
entre
cães, falcões
e bichos
mais.
Lino Machado. Sob uma capa. Vitória: Secult, 2010,
p.40.
entre o sono e a vigília
Há um momento, entre o sono e a vigília, que tem me
surpreendido ultimamente. Estou caindo de sono, com um livro nas mãos ― no momento A lua vem da Ásia ―,
e ainda penso que leio. Então os olhos começam a cerrar-se sobre um parágrafo
que nunca mais termina, enquanto imagens estranhas atravessam minha mente como
se fossem choques, pois volto a despertar imediata e instantaneamente,
surpreendida, embora tenha demorado a percebê-lo assim, pelo conteúdo dos
sonhos que está a penetrar a vigília. Os sonhos cabem na inconsciência do sono,
e por isso a sensação de choque. São imagens e sensações estranhíssimas, que
não conseguem encontrar expressão e vazão na linguagem e em sua arquitetada
sintaxe. Vencida pelo sono, deixo o livro e procuro uma posição confortável
para dormir, imaginando o que irei vivenciar enquanto o eu da vigília estiver
ausente, praticamente sem conseguir ter acesso a isso, pois que vigilante,
pela manhã, o eu volta e intercepta o que poderia chocar.
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