Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 26 de junho de 2010

NADA E A NOSSA CONDIÇÃO

Um dos contos mais instigantes de Primeiras estórias surpreende pelo título ― "Nada e a nossa condição": a presença da conjunção aditiva e em vez do esperado é (o verbo ser conjugado na terceira pessoa do singular do presente do indicativo). Mesmo assim, o título parece querer dizer que nossa condição é pouco mais do que nada. A obra de Guimarães Rosa, em seus aspectos mais metafísicos, trata de uma questão bem moderna ― o olhar, o conhecimento. Riobaldo, nos momentos culminantes de Grande sertão: veredas, faz-se acompanhar por um cego vidente. Em "São Marcos", o personagem principal, vítima de um vodu, passa por uma cegueira temporária, mas sua principal cegueira é existencial. No conto "O espelho", o olhar e sua construção/desconstrução são o tema, fortemente atrelado à identidade. Diz o narrador ao seu interlocutor, numa passagem que sintetiza bem a tônica conferida aos olhos, uma metonímia da olhar: "Os olhos, por enquanto, são a porta do engano; duvide deles, dos seus, não de mim." (p.66). Mais adiante, pergunta-se, após a disciplinada, árdua e obstinada desconstrução desse olhar sobre si: 

"Voltei a querer encarar-me. Nada. E, o que tomadamente me estarreceu: eu não via os meus olhos. No brilhante e polido nada, não se me espelhavam nem eles! Tanto dito que, partindo para uma figura gradualmente simplificada, despojara-me, ao termo, até a total desfigura. E a terrível conclusão: não haveria em mim uma existência central, pessoal, autônoma? Seria eu um... des-almado? Então, o que se me fingia de um suposto eu, não era mais que, sobre a persistência do animal, um pouco de herança, de soltos instintos, energia passional estranha, um entrecruzar-se de influências, e tudo o mais que na impermanência se indefine? Diziam-me isso os raios luminosos e a face vazia do espelho ― com rigorosa infidelidade. E seria assim, com todos? Seríamos não muito mais que as crianças ― o espírito do viver não passando de ímpetos espamódicos, relampejados entre miragens: a esperança e a memória." (João Guimarães Rosa. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p.70-71). 

Difícil comentar a riqueza sugestiva do trecho. A metonímia do olhar na imagem dos olhos que não enxergam nada, sequer os próprios olhos ― janelas da alma, no célebre dito atribuído a Leonardo da Vinci. O olhar que não se vê, e portanto não consegue se dizer. E aí Guimarães Rosa se encontra com Clarice Lispector, mais do que faria suspeitar o pertencimento à mesma época literária. Assunto que dá pano pra manga.

Carlos Drummond de Andrade

UM BOI VÊ OS HOMENS

Tão delicados (mais que um arbusto) e correm
e correm de um para outro lado, sempre esquecidos
de alguma coisa. Certamente, falta-lhes
não sei que atributo essencial, posto se apresentarem nobres
e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves,
até sinistros. Coitados, dir-se-ia que não escutam
nem o canto do ar nem os segredos do feno,
como também parecem não enxergar o que é visível
e comum a cada um de nós, no espaço. E ficam tristes
e no rastro da tristeza chegam à crueldade.
Toda a expressão deles mora nos olhos – e perde-se

a um simples baixar de cílios, a uma sombra.
Nada nos pelos, nos extremos de inconcebível fragilidade,
e como neles há pouca montanha,
e que secura e que reentrâncias e que
impossibilidade de se organizarem em formas calmas,
permanentes e necessárias. Têm, talvez,
certa graça melancólica (um minuto) e com isto se fazem
perdoar a agitação incômoda e o translúcido
vazio interior que os torna tão pobres e carecidos
de emitir sons absurdos e agônicos: desejo, amor, ciúme
(que sabemos nós?), sons que se despedaçam e tombam no campo
como pedras aflitas e queimam a erva e a água,
e difícil, depois disto, é ruminarmos nossa verdade.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião: 10 livros de poesia.  Rio de Janeiro: José Olympio, 1971, p.167. (Claro enigma)

quinta-feira, 24 de junho de 2010

a terceira margem do rio

Foi um professor de literatura, nos idos da ufes, que chamou a atenção para a ambiguidade do final do conto "A terceira margem do rio", de Guimarães Rosa: na semântica do enunciado, caberia tanto o substantivo "rio" quando a conjugação em primeira pessoa do verbo "rir", a que minhas circunstâncias particulares permitem acrescentar um terceiro sentido, ou uma terceira margem - Rio: "e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro - o rio." (Rosa, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p. 37).

céu azul no rio de janeiro

quarta-feira, 23 de junho de 2010

o "eu" e seus desvãos

Quanto mais o tempo passa, mais me parece pertinente aquele dito da Clarice, num de seus contos mais herméticos, "O ovo e a galinha": "...'eu' é apenas uma das palavras que se desenham enquanto se atende ao telefone, mera tentativa de buscar forma mais adequada." Salvo engano, acho que entendi. Trata-se de um olhar oblíquo sobre a hipertrofia do EU que acomete as pessoas numa dada fase de suas vidas, especialmente quando estão sofrendo: "eu", "porque eu", "mas eu", "senão eu", "pois eu", "então eu"... e por aí vai - um "eu" que não dá trégua: "As galinhas prejudiciais ao ovo são aquelas que são um 'eu' sem trégua", diz a narradora no mesmo conto. Por isso gosto tanto das letras minúsculas, das coisas que podem ser ditas em minúsculas: parte da importância delas é retirada. Quando assisti ao monólogo "Simplesmente eu: Clarice Lispector", uma das partes que mais me chamou a atenção foi quando a atriz (na verdade parecia a própria Clarice, sem qualquer heresia) falava mais ou menos assim: como querem saber quem eu sou? como posso dizer quem sou eu? eu não sei quem eu sou... É pretensão querer saber quem a gente é. O "eu" é uma estranha armadilha em que inadvertidamente caímos, ao acreditarmos que há um centro organizador de nós mesmos. Nos achatamos num suposto "eu", e dele fazemos uma identidade. E aqui é bom não confundir literatura e vida - a mesma Clarice que advertia acerca dos limites do que se chama "eu" em seus textos era, de certa forma, um "eu" atormentado. Talvez por isso escrevesse com tanta propriedade sobre a questão.

terça-feira, 22 de junho de 2010

aonde vai a poupança popular?

Aonde vai a poupança popular?
Millôr Fernandes

O capitalistão americano entrou no Museu do Prado* e ficou besta diante de tanta arte. Que realidade, que vida, que grandiosidade! Os porretas desses pintores pintavam tão bem que as roupas até pareciam de vera fazenda. Depois de olhar e mais olhar, o capitalistão sentiu lá as suas limitações culturais**. Vendo que perto dele tinha um italiano fardado, à espera da gorjeta, o capitalistão botou a mão no bolso, puxou uma de cinco, deu pro homem*** e perguntou: “Quem foi que pintou isso?”. “Raffaello”, o italianão respondeu. “Bravo pittore.” “É vivo ainda?”, perguntou o capitalistão. “Não, já morreu”, respondeu o italianão. “Essa tela hoje deve estar valendo parecchi miliardi****, milhões de dólares”. “Milhões?”, boquiabriu-se o capitalistão. “E quem são esses personagens aí, pintados por um pintor tão caro?” “A virgem Maria, São José e o menino Jesus.” “Ah,” tornou o capitalistão, “e que é que estão fazendo ai?” “É a fuga pro Egito”, explicou o italianão. “Então é por isso que eles estão assim tão mal vestidos, é?” “Não. Eles sempre foram mesmo muito pobres”. “Ah,” exclamou de novo o capitalistão, “não eram nobres?” “Nobres, pô!”, respondeu o italianão. “Maria era uma mulher do povo, o marido era um carpinteiro.” “É o tal negócio,” concluiu então o capitalistão, “eu sempre digo que é por isso que a Espanha não vai pra frente: taí, vê? Uns proletários mortos de forme, gente que não tem nem o que comer, fugindo da polícia, e todo o dinheiro que têm, em vez de colocar na Bolsa, que é que eles fazem? Gastam tudo, mandando um pintor caríssimo fazer o retrato deles.”

MORAL: DESSA MANEIRA A ESPANHA JAMAIS PODERÁ ENFRENTAR O DESAFIO AMERICANO.

* Na verdade, quando ele entrou no Museu do Prado pensava que ia ver uma coleção de relíquias turísticas.
** É fatal. Qualquer coisa que a gente aprende só faz nos dar uma imensa impressão de estupidez.
*** Deu pro homem apenas economicamente, é bom esclarecer.
**** Esse italiano no Museu do Prado é uma tentativa minha de evitar qualquer forma de realismo.

Millôr Fernandes. Fábulas Fabulosas. 15. ed. Rio de Janeiro: Nórdica, 1999, p. 111-112.