Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
sábado, 10 de agosto de 2013
Georg Trakl
CALMA E SILÊNCIO
Pastores enterraram o sol na floresta
nua.
Um pescador puxou
Um pescador puxou
a lua do lago gelado em áspera
rede.
No cristal azul
Mora o pálido Homem, o rosto apoiado nas suas estrelas;
Ou curva a cabeça em sono purpúreo.
Mora o pálido Homem, o rosto apoiado nas suas estrelas;
Ou curva a cabeça em sono purpúreo.
Mas sempre comove o voo negro dos
pássaros
Ao observador, santidade de flores azuis.
O silêncio próximo pensa no esquecido, anjos apagados.
Ao observador, santidade de flores azuis.
O silêncio próximo pensa no esquecido, anjos apagados.
De novo a fronte anoitece em pedra
lunar;
Um rapaz irradiante
Surge a irmã em outono e negra decomposição.
Um rapaz irradiante
Surge a irmã em outono e negra decomposição.
George Trakl. De profundis e outros poemas. Trad.
Claudia Cavalcanti. São Paulo: Iluminuras, 2010, p.53.
Julio Cortázar
HISTÓRIA
VERÍDICA
Um
senhor deixa cair ao chão os óculos, que fazem um barulho terrível ao bater nos
ladrilhos. O senhor se abaixa aflitíssimo porque as lentes dos óculos custam
muito caro, mas descobre assombrado que por milagre elas não se quebraram.
Agora
esse senhor sente-se profundamente grato, e compreende que o acontecimento vale
por uma advertência amistosa, de maneira que se dirige a uma ótica e compra
logo um estojo de couro acolchoado, com proteção dupla, como precaução. Uma
hora depois deixa cair o estojo e ao abaixar-se sem maior preocupação verifica
que os óculos viraram farelo. Esse senhor leva tempo para compreender que os
desígnios da Providência são insondáveis e que na realidade o milagre aconteceu
agora.
CORTÁZAR, Julio. Histórias de cronópios e de famas. Trad.
Glória Rodriguez. 12.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p.72.
sexta-feira, 9 de agosto de 2013
quarta-feira, 7 de agosto de 2013
terça-feira, 6 de agosto de 2013
domingo, 4 de agosto de 2013
Ferreira Gullar
NÓS, LATINO-AMERICANOS
À Revolução Sandinista
Somos todos irmãos
mas não porque tenhamos
a mesma mãe e o mesmo pai:
temos é o mesmo parceiro
que nos trai.
mas não porque tenhamos
a mesma mãe e o mesmo pai:
temos é o mesmo parceiro
que nos trai.
Somos todos irmãos
não porque dividamos
o mesmo teto e a mesma mesa:
divisamos a mesma espada
sobre nossa cabeça.
não porque dividamos
o mesmo teto e a mesma mesa:
divisamos a mesma espada
sobre nossa cabeça.
Somos todos irmãos
não porque tenhamos
o mesmo braço, o mesmo sobrenome:
temos um mesmo trajeto
de sanha e fome.
não porque tenhamos
o mesmo braço, o mesmo sobrenome:
temos um mesmo trajeto
de sanha e fome.
Somos todos irmãos
não porque seja o mesmo sangue
que no corpo levamos:
o que é o mesmo é o modo
como o derramamos.
não porque seja o mesmo sangue
que no corpo levamos:
o que é o mesmo é o modo
como o derramamos.
Ferreira Gullar. Toda
poesia. 19.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010, p.378.
Luciano Candisani
Luciano Candisani Photography / Luciano Candisani Fotografia. Reportagem do Almanaque aqui.
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