Quando, na caminhada noturna, vou chegando perto de
uma região mais sombreada e vazia, lembro-me do acontecido no último Natal, e
percebo que esse acontecido quer encontrar lugar nas palavras, está pedindo por
isso, porque se recusa a tornar-se esquecimento. Fico imaginando que milagres
poderia conceber a partir das palavras, e contudo ainda não consegui encontrar
aquelas que vão dar ao acontecido o contorno que ele está pedindo. Então
hesito.
Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
sábado, 2 de fevereiro de 2013
quando a calma invade a alma
A prática mais ou menos regular de atividade física ―
caminhada e natação ― trouxe-me inúmeros benefícios. Não sei se por efeito ou
força disso, eu me percebi mais alheia ao mundo, às coisas, às pessoas. Creio
que se intensificou, antes, uma transformação que vinha em curso lento e quase
imperceptível, um movimento desde sempre meu, remontando à infância. O mantra tomado de empréstimo a Álvaro de Campos:
“Fique eu só com o grande sossego de mim mesmo / É um universo barato”. Só com o grande sossego de mim mesmo(a). Quanta coisa neste verso elíptico, em que
o eu e seu reflexo (mim mesmo) miram-se sossegadamente. Sobretudo isso: o
grande sossego advém também de ser um universo barato.
e quem não gosta de carnaval?
Nesta madrugada a prefeitura deixou alguns banheiros
químicos aqui na rua. Tive esperança de que estivessem aqui só provisoriamente,
destinados a outro lugar. Foliões de uma agremiação local fazem saber que o
barulho ― muito ― será aqui também.
desordem
Sonhei com este espaço. Aparecia-me caótico, com erros
e furos, contrariamente ao modo com que o percebo, e não era uma questão de marcadores. Depois, ou concomitantemente, eu entabulava uma conversa
meio acadêmica meio nonsense com alguém, versando sobre idiossincrasias minhas que não fazem qualquer sentido, depois de passado o sonho, e portanto não são traduzíveis. Por fim aparecia uma tradutora,
conhecida minha e de meu interlocutor, para ajudar nos trabalhos.
José Paulo Paes
IVAN ILITCH, 1958
Trrrim, bocejo,
Roupão, chinelos,
Gilete, escova,
Água, sabão,
Café com pão,
Chapéu, gravata,
Beijo, automóvel,
Adeus, adeus.
Gente, trânsito,
Sol, bom-dia,
Escritório,
Relatório,
Telefones,
Almoço, arroto,
Contas, desgosto,
Adeus, adeus.
Clube, vento,
Grama, tênis,
Ducha, alento,
Bar, escândalos,
Pedro, Paulo,
Mulher de Pedro,
Mulher de Paulo,
Adeus, adeus.
Lar, esposa,
Filhos, pijama,
Janta, living,
Jornal, cismares,
Tricô, vagares,
Hiato, ausências,
Bocejo, escada,
Adeus, adeus.
Quarto, cama,
Glândulas, êxtase,
Dois em um,
Dois em nada,
Dever cumprido,
Luz apagada,
Adeus, adeus.
Horas, dias,
Meses, anos,
Cãs, enganos,
Desenganos,
Vácuo, náusea,
Indiferença,
Cipreste, olvido,
Cipreste, olvido,
Há Deus? adeus.
José Paulo Paes. Poesia
completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.141-142.
sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013
a experiência da dor e da morte
A
morte de Ivan Ilitch é um livro que se lê devagar ― devagar no
sentido da expectativa de leitura e do(s) sentido(s) do que está sendo narrado.
Esse sentido vai chegando sem alarde, e nunca chega de todo, como se a leitura
continuasse depois de finda a narrativa e a vida de Ivan Ilitch. Tudo é muito
doloroso, morte e vida compõem o mesmo teatro hediondo que causa horror a Ivan
Ilitch no final trágico de sua vida, vida que trazia a morte em embrião: “Quando
ele viu de manhã o criado, depois a mulher, em seguida a filha, o médico, cada
um dos movimentos deles, cada uma de suas palavras confirmavam para ele a
terrível verdade que se revelara naquela noite. Via neles a si mesmo, tudo
aquilo de que vivera, e via claramente que tudo aquilo era não o que devia ser,
mas um embuste horrível, descomunal, que ocultava
tanto a vida como a morte.” (TOLSTÓI, Lev. A
morte de Ivan Ilitch. Trad. Boris Schnaiderman. São Paulo: Editora 34,
2009, p.72).
palavrões engatilhados
Como pedestre contumaz, convivo com as infrações
cometidas pelos motoristas, de variada espécie, a mais comum sendo o avanço do
sinal vermelho, limitando ainda mais o tempo de travessia do pedestre. A rua é
deles, dos carros e seus proprietários, os pedestres que se virem. Pois eu,
além de me virar, tenho para essas situações alguns palavrões engatilhados, que
pronuncio antes para dentro, mas que saem como resposta reflexa ao desrespeito. "Corno", por exemplo, eu sempre falo. Não vai mudar nada, mas também, se eu for
atropelada, por exemplo, a única coisa que vai mudar é que vou deixar de
existir ― morrer ―, porque a impunidade grassa como os cornos neste país. Nada
vai mudar. Mas eu, dizendo meu xingamento, ainda que para dentro, fico mais
forte, e adio minha morte.
morrer burocraticamente
“A mentira, essa
mentira que lhe era pregada nas vésperas de sua morte, a mentira que devia abaixar
esse ato terrível e solene da sua morte até o nível de todas as suas visitas,
das cortinas, do esturjão do jantar... era horrivelmente penosa para Ivan Ilitch.
[...] Por meio daquela mesma ‘decência’ a que ele servira a vida inteira, todos
os circunstantes rebaixavam o ato terrível, horroroso, da sua morte, ele via bem,
ao nível de um acaso desagradável, quase uma inconveniência (a exemplo da
maneira com que se trata um homem que, entrando numa sala de visitas, passa a
exalar um mau cheiro); via que ninguém haveria de compadecer-se dele, porque
ninguém queria sequer compreender a sua situação.”
TOLSTÓI, Lev. A morte de Ivan Ilitch. Trad. Boris Schnaiderman. São Paulo:
Editora 34, 2009, p.56.
quarta-feira, 30 de janeiro de 2013
quando a dor fala...
O que fazer?
Hoje. Nas ruas do centro, o sapato
novo esfolando o pé, e então reduzir os movimentos, encontrar uma farmácia,
comprar band-aid. Os pés machucados, andar devagar, mesmo com o band-aid, pisar
com cuidado. Nunca um sapato novo havia causado tanto desconforto em meus pés. Muito rápido o
incômodo nos pés manifestando-se e aumentando, 15 minutos perdidos no centro às
voltas com encontrar uma farmácia e comprar o band-aid, para colocar nos pontos
machucados do pé, na própria farmácia, encontrar um canto na farmácia porque não dava mais
para continuar andando.
Depois, devagar, seguir para o metrô
e chegar com 15 minutos de atraso na sessão de análise na zona sul, com a
sensação de dia desperdiçado e já pensando: mas era preciso mesmo ter comprado
aquele sapato? Não, não era. Foi comprado no impulso, atendendo vagamente à
necessidade de um sapato mais fechado para dias de chuva. No início da sessão,
o assunto foram os meus pés esfolados. Retirei os sapatos durante a sessão. Por
que o incômodo maior era tentar entender como um sapato que ficou tão confortável
na loja, no dia em que foi comprado, pôde, em sua primeira vez de uso, produzir
um desconforto tremendo, paralisante.
Sapato condenado, mas a sessão de
análise não. Como a dor gera desconforto espiritual! Finda a sessão, precisava voltar o mais depressa possível para casa, para aliviar o
incômodo nos pés.
Não sei quantas pessoas vi hoje
dormindo na calçada, mas a lembrança dos sapatos comprados impulsivamente fazia
com que eu me sentisse participando da lógica perversa e cruel que leva pessoas
a dormir em calçadas. A esfoladura nos pés me enchia de culpa por aquela
compra. Sempre tive poucos, bem poucos sapatos. E é claro, naturalmente, que um
dos meus impulsos, quando o incômodo se intensificou, foi tirar os sapatos e seguir o caminho descalça. Mas aí me
lembrava de imagens antigas que frequentavam minha noite, em que eu me apanhava
descalça em público, e isso equivalia a uma exposição constrangedora de minha pessoa. Era sempre ruim, porque eu
precisava me esconder do que experimentava, no sonho, como vergonha. Os sapatos vestem os pés
como a roupa veste o corpo.
Hoje, ao sentir os pés esfolados,
machucados, me desconcertei, perdi o rumo. Não me lembro mais em que parte da
cidade vi pessoas dormindo na calçada. No centro, certamente. Não sei o que
fazer quando as vejo, não sei se devo esquecer um tempo os sapatos ― e as lojas,
e o verbo comprar ― para tentar experimentar alguma forma de despojamento que me
traga a delicadeza perdida. Ou então esquecer o que tiver de ser esquecido, sem
abrir mão dos sapatos, para, quem sabe, renascer.
João Cabral de Melo Neto
O que vive
incomoda de vida
o silêncio, o sono,
o corpo
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens.
O que vive choca,
tem dentes, arestas,
é espesso.
O que vive é espesso
como um cão, um
homem,
como aquele rio.
MELO NETO, João Cabral de. Serial e antes. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1997, p.84. [de “O cão sem plumas”]
Mário Quintana
DO EXERCÍCIO DA
FILOSOFIA
Como o burrico
mourejando à nora,
A mente humana
sempre as mesmas voltas dá...
Tolice alguma nos
ocorrerá
Que não a tenha
dito um sábio grego outrora...
Mário Quintana. O aprendiz de feiticeiro seguido de O espelho
mágico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p.101.
terça-feira, 29 de janeiro de 2013
palavras em silêncio
“Às vezes as
palavras se movem rápido demais e precisam de um silêncio para fazer algum
sentido.”
Mário Quintana
DA PAZ INTERIOR
O sossego, se
queres atingi-lo,
Não deixes coisa
alguma incompleta ou adiada.
Não há nada que dê
um sono mais tranquilo
Que uma vingança
bem executada...
Mário Quintana. O aprendiz de feiticeiro seguido de O espelho
mágico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p.79.
gorilões sábios
“A chave é não
se levar a sério demais. Foi essa a mensagem antipsicologizante que os Coen passaram no Oscar e essa é a mensagem que está implícita até no título do filme
[Queime Depois de Ler]. Assista,
divirta-se, ponto.” Uma das formas de não se levar a sério demais, nem ao que
acontece a nosso redor, é queimar depois de ler: o que não se sabe não pesa
nas decisões. E nem sempre é bom saber.
poeira de água
Na caminhada habitual (hoje matinal), havia uma
poeira muito fina de água caindo do céu. Num dado (e por um) momento, enquanto
esperava a vez de atravessar a rua, tudo assumiu uma forma singular ― talvez pela
circunstância de me encontrar parada, no contrafluxo do movimento que vinha
fazendo ―, e aquela poeira de água, intensificando-se muito devagar, emprestava
à atmosfera que vinha ao encontro de meu rosto um frescor mágico. Tão pouco,
uma poeirinha de água, rarefeita, sobre a vegetação, e o mundo parecia integrar-se
ao sentido perdido no exílio do éden.
sentimentos (infinitamente) mínimos
Sem
modéstia, da realidade eu sei quase tudo. Quase sufoco de tanto saber. Só que
agora estou achando que a realidade é uma das faces do saber, a mais forte quem sabe, porque é com ela que eu
posso escrever coisas como esta, recorrendo a termos consagrados como “face”,
“saber” e (inclusive) “realidade”.
Armando Freitas Filho (a decisão do azul)
VIAGEM
Pregado no céu, o gavião feito
de paciência e espaço
permanece cruzando, quase único
a estrada que atravessa, e toca
nos possíveis violinos silvestres
que o vento afina lá dentro
da mata veloz que passa
na janela do carro: zás, zap
na paisagem ― a decisão do azul.
Asas paradas e o olhar duro que
o asfalto e a distância alimentam.
Boa companhia: poesia (Org.
José Almino). São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.99.
o síndico (de piaget a pinochet): a realidade como funeral das ilusões
Sobre o documentário Edifício Master (2002), de Eduardo Coutinho: “É de Sérgio [o síndico] a frase mais contundente do filme, ao expor o seu exercício do poder:
de Piaget a Pinochet. Ou seja, ele administra exercendo primeiro o amor, não
dando resultado vem a porrada. Para ele ‘a realidade é o funeral das ilusões’.
O dia a dia enterra discursos mais ternos e empurra-nos (a todos) para diálogos
concretos, ficando-se assim expostos às verdades cruas, por mais duras que
sejam, e as mentiras engendradas perdem-se na própria falta de sentido.” (daqui)
segunda-feira, 28 de janeiro de 2013
um mar que não cabe em mim
Oi, .................., não sei se você está muito a fim de
papo, aliás, não tem nem mesmo como eu saber isso. O que sei é que as palavras
não querem ficar aqui paradas, então escrevo. Acho isso que acabei de dizer
bonito: escrever para não deixar as palavras paradas. Hoje eu ouviria qualquer
coisa que me soasse minimalista, porque a poeira andou alta.
domingo, 27 de janeiro de 2013
paisagem do silêncio
Atender ao telefone é receber uma visita inesperada.
Porque se trata de uma voz, um diálogo, uma interlocução que estão pedindo
passagem para a casa-paisagem que o eu ocupa, num momento em que a paisagem
pode estar bastante ocupada, inclusive com não ser eu. Quando ouço o telefone
tocar, nem sempre estou podendo efetivamente
falar ― e secundariamente falar com aquele interlocutor, naquele contexto. Alguma
coisa em mim diz não, não posso agora. O silêncio tem-se me tornado sagrado, e
acho que o eu precisa respeitar a paisagem de seu silêncio. Isso também é uma
forma de arte.
Richard Long, Sahara Line, 1988
Assinar:
Postagens (Atom)