Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


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sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Brasil: o que dizer?

SIGLAS
Luis Fernando Verissimo


― Bota aí: “P”
― “P”?
― De “Partido”.
― Ah.
― Nossa proposta qual é? De união, certo? Acho que a palavra “União” deve constar o nome.
― Certo. Partido de União...
― Mobilizadora!
― Boa! Dá a ideia de ação, de congraçamento dinâmico. Partido da União Mobilizadora. Como é que fica a sigla?
― PUM.
― Não sei não...
― É. Vamos tentar outro. Deixa ver. “P”...
― “P” é tranquilo.
― Acho que “Social” tem que constar.
― Claro. Partido Social...
― Trabalhista?
― Fica PST. Não dá.
― É. Iam acabar nos chamando de “Ei, você”.
― E mesmo “trabalhista”, não sei. Alguém aqui é trabalhista?
― Isso é o de menos. Vamos ver. “P”...
― Quem sabe a gente esquece o “P”?
― É. O “P” atrapalha. Bota “A”, de Aliança. Aliança Inovadora...
― AI.
― Que foi?
― Não. A sigla. Fica AI.
― Espera. Eu ainda não terminei. Aliança Inovadora... de Arregimentação Institucional.
― AIAI... Sei não.
― É. Pode ser mal interpretado.
― Vanguarda Conservadora?
― Você enlouqueceu? Fica VC.
― Aliança Republicana de Renovação do Estado.
― ARRE!
― O quê?
― Calma.
― Espera aí, pessoal. Quem sabe a gente define a posição ideológica do partido antes de pensar na sigla? Qual é, exatamente, a nossa posição?
― Bom, eu diria que estamos entre a centro-esquerda e a centro-direita.
― Então é no centro.
― Também não vamos ser radicais...
― Nós somos a favor da reforma agrária?
― Somos, desde que não toquem na terra.
― Aceitaremos qualquer coalizão partidária para impedir a propagação do comunismo no Brasil.
― Inclusive com o PCB e o PC do B?
― Claro.
― Não devemos ter medo de acordos e alianças. Afinal, um partido faz pactos políticos por uma razão mais alta.
― Exato. A de chegar ao poder e esquecer os pactos que fez.
― Partido Ecumênico Republicano Unido.
― PERU?
― Movimento Institucionalista Alerta e Unido.
― MIAU?
― Que tal KIM?
― O que significa?
― Nada, eu só acho o nome bonito.
― MUMU. Movimento Ufanista Mobilização e União.
― MMM... Movimento Moderador Monarquista.
― Mas nós somos republicanos.
― Eu sei. Mas por uma boa sigla a gente muda.
― TCHAU.
― Hum, boa. Trabalho e Capital em Harmonia com Amor e União?
― Não, é tchau mesmo.
― Aonde é que você vai?
― Abrir uma dissidência.

sábado, 16 de abril de 2016

ser um sueco em trânsito

O SUECO ― Os problemas do Brasil, as mesquinharias de nossa vida pública, a miséria fundamental de nosso povo, todas essas coisas de repente cansam e desanimam uma pessoa sensível. Evandro Pequeno encontrou uma solução: “Eu sou um sueco em trânsito.”
Não saber de nada, não entender uma palavra do que estão dizendo ou escrevendo por aí, não ter nada a ver com nada, não se sentir responsável por nada (muito menos pela famosa dívida externa), não ter vergonha de nada: ser um sueco em trânsito.
E, se possível, como Evandro fazia, tocar fagote.

BRAGA, Rubem. Recado de primavera. 8. ed. Rio de Janeiro: Record,2008, p.98.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Liberdades – Luis Fernando Veríssimo

É livre quem pode fazer o que quiser — dentro das suas limitações de espaço, tempo, energia e recursos. Só se é livre dentro de certos limites. Portanto, toda liberdade é condicional.
***
Só é totalmente livre quem pode exercer a sua vontade sem qualquer limitação moral ou material. Isto é: o tirano. Assim, a liberdade suprema só existe nas tiranias.
***
Dizer que a minha liberdade termina onde começa a liberdade do outro é muito bonito. Mas e se a liberdade foi mal distribuída e o meu vizinho tem um latifúndio de liberdade enquanto a minha é um quintal de liberdade, liberdade mesmo que tadinha? Não é feio sugerir um reestudo da divisão.
***
Cuidado com quem dá aos outros toda a liberdade. Geralmente é quem pode tirá-la.
***
Há os que passam o dia inteiro livres e chegam em casa se queixando disso. São os motoristas de táxi. Toda liberdade é relativa.
***
Toda liberdade é relativa. Verdade exemplarmente ilustrada por este diálogo entre o preso e o carcereiro.
— Nunca mais vou sair daqui.
— Calma. Não desanime.
— Não tem jeito. Estou aqui para sempre.
— Vou ver o que posso fazer por você.
— Não adianta. Estou condenado. Desta prisão eu não saio. Se esqueceram de mim.
— Eu não esquecerei. Voltarei para visitá-lo.
— Promete? — diz o carcereiro.
***
Quem é livre às vezes não sabe. Quem não é livre sempre sabe. Ou será o contrário? A gente vê tanta gente inexplicavelmente feliz.
***
Alguns são obcecados pela liberdade e prisioneiros da sua obsessão.
***
Os loucos são livres e vivem presos por isso.
***
Poderia se dizer que livre, livre mesmo, é quem decide de uma hora para outra que naquela noite quer jantar em Paris e pega um avião. Mas mesmo este depende de estar com o passaporte em dia e encontrar lugar na primeira classe. E nunca escapará da dura realidade de que só chegará em Paris para o almoço do dia seguinte. O planeta tem seus protocolos.
***
Fala-se em liberdade como se ela fosse um absoluto. Mas dizer “eu quero ser livre” é o mesmo que dizer “eu quero” e não dizer o quê. Existe a Liberdade De e a Liberdade Para. Não é uma questão apenas de preposições e semântica. É a questão do mundo. O liberalismo clássico iconizou a Liberdade Para. Você é livre se tem liberdade para dizer o que pensa e fazer o que quer, para ir e vir e exercer o seu individualismo até o fim, ou até o limite da liberdade do outro. A ideia de que a verdadeira liberdade é a Liberdade De é recente. Livre de verdade é quem é livre da fome, da miséria, da injustiça, da liberdade predatória dos outros. A ideia é recente porque antes era inconcebível.
Ser livre do despotismo era automaticamente ser livre para o que se quisesse, para a vida e a procura individual do paraíso. Foi preciso uma virada no pensamento humano para concluir que Liberdade Para e Liberdade De não eram necessariamente a mesma liberdade e outra virada para concluir que eram antagônicas. A última virada é a decisão de que uma liberdade precisa morrer para que a outra viva. Não concorde com ela muito rapidamente.
***
Enfim, de todos os crimes que se cometem em nome da liberdade, o pior é a retórica.
***
Mas eu desconfio que a única pessoa livre, realmente livre, completamente livre, é a que não tem medo do ridículo.

VERISSIMO, Luis Fernando. Em algum lugar do paraíso. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011, p.181-185.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Clarice Lispector

NÃO SENTIR

O hábito tem-lhe amortecido as quedas. Mas sentindo menos dor, perdeu a vantagem da dor como aviso e sintoma. Hoje em dia vive incomparavelmente mais sereno, porém em grande perigo de vida: pode estar a um passo de estar morrendo, a um passo de já ter morrido, e sem o benefício de seu próprio aviso prévio.

Clarice Lispector. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.32.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

verissimo, domingo, n'o globo

POETAS
Luis Fernando Verissimo
1/09/13
Ainda não sabemos tudo sobre Marte, mas sabemos o bastante para dizer que ele nos decepcionou. Marte foi um blefe. Os tais canais vistos pelas lunetas antigas, provas de que haveria alguma forma de vida inteligente no planeta, mesmo que fosse só de engenheiros, não eram canais. Nenhum vestígio de qualquer tipo de vida apareceu em Marte, muito menos o de uma civilização de homenzinhos verdes, ou de qualquer outra cor, com a capacidade para invadir a Terra. Anos e anos de literatura premonitória e previsões terríveis foram desperdiçados. Nos apavoraram por nada. Como no Iraque, também não havia armas de destruição em massa em Marte.
Mas, se Marte revelou ser um imenso parque de estacionamento, que não ameaça a Terra, isso não quer dizer que não existam civilizações lá fora que cedo ou tarde entrarão em contato conosco, exigindo nossa submissão ou anunciando a invasão.
Nada nos assegura que, se ainda não fomos invadidos por exércitos extraterrenos, não tenha havido — ou esteja havendo neste momento — missões de prospecção e espionagem, feitas por destacamentos avançados ou por agentes isolados. Não quero assustar ninguém, mas vou contar. Já tive contato com um desses agentes extraterrestres. Desconfiei quando ele disse “Vocês são engraçados...” e eu perguntei: “Vocês”, quem? “Vocês” brasileiros? “Vocês” carecas? “Vocês” míopes? Destros? Cardiopatas? E ele respondeu: “Vocês, gente.”
E me confessou (já tinha bebido um pouco) que não era deste mundo, era de outro, e estava prospectando o Universo inteiro atrás de um planeta para ser colonizado pelo seu. Achava que tinha, finalmente, encontrado este planeta. Era a Terra. No seu relatório, recomendaria que a Terra fosse ocupada e sua principal riqueza natural explorada, pois era o que faltava no planeta do qual viera.
Perguntei qual era a riqueza natural que nós tínhamos e eles não e o extraterrestre respondeu: “A poesia.” E perguntou: “Você sabe que a Terra é o único planeta do universo conhecido em que as pessoas dão nome aos ventos?” Fiquei lisonjeado com aquilo, pensando: “Taí, somos todos poetas e não sabíamos”, e perguntei o que fariam com os poetas da Terra no planeta dele.
— Comê-los, claro — respondeu ele.
E explicou que não havia mais poetas no seu planeta porque já tinham comido todos. Ou como eu imaginava que eles tinham se tornado uma civilização tão avançada?

domingo, 1 de setembro de 2013

Rubem Braga

O padeiro

Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento — mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a "greve do pão dormido". De resto não é bem uma greve, é um lock-out, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo.
Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando:
— Não é ninguém, é o padeiro!
Interroguei-o uma vez: como tivera a ideia de gritar aquilo?
"Então você não é ninguém?"
Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: "não é ninguém, não senhora, é o padeiro". Assim ficara sabendo que não era ninguém...
Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina — e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno.
Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; "não é ninguém, é o padeiro!"
E assobiava pelas escadas.

Rubem Braga. 200 crônicas escolhidas. 29.ed. Rio de Janeiro: Record, 2008, p.321-322.

domingo, 14 de julho de 2013

a descoberta da vida

Lia (o verbo reler, no caso de Clarice, não se aplica), antes de dormir, a crônica “A descoberta do mundo”, inserta em uma coletânea do gênero, quando, ao chegar neste trecho, voltei e voltei mais uma vez: “Ou será que eu adivinhava mas turvava minha possibilidade de lucidez para poder, sem me escandalizar comigo mesmo, continuar em inocência a me enfeitar para os meninos? (...) Seria minha ignorância um modo sonso e inconsciente de me manter ingênua para poder continuar, sem culpa, a pensar nos meninos?” Foi então que, um pouco nebulosamente, foi-se me revelando um dado, talvez o que faltava, de um enigma de minha história pessoal — não digo “o enigma” porque seria subestimar a vida. Eu entendi, eu encontrei a peça que faltava, não de maneira clara e lógica e cristalina, mas como essas coisas conseguem se dar ao nosso entendimento. E então jorraram imagens durante a noite, que confirmaram minha cegueira. Talvez então isso que Clarice disse possa ter algum sentido para mim: “Porque eu sempre soube de coisas que nem eu mesma sei que sei.” Clarice Lispector é única. E eu não sei se alguma coisa está melhor hoje pelo fato dessas coisas se terem dado, mas entender junto com Clarice Lispector é conhecer sem se brutalizar.

domingo, 30 de junho de 2013

Verissimo n'O Globo de hoje

ALTERNATIVA
Ao contrário da morte, de uma ditadura se volta, preferencialmente com uma lição aprendida. Para mudar isso aí, prefira a vida — e o voto
LUIS FERNANDO VERISSIMO, 30/06/13

Envelhecer é chato, mas consolemo-nos: a alternativa é pior. Ninguém que eu conheça morreu e voltou para contar como é estar morto, mas o consenso geral é que existir é muito melhor do que não existir. Há dúvidas, claro. Muitos acreditam que com a morte se vai desta vida para outra melhor, inclusive mais barata, além de eterna. Só descobriremos quando chegarmos lá. Enquanto isto vamos envelhecendo com a dignidade possível, sem nenhuma vontade de experimentar a alternativa.
Mas há casos em que a alternativa para as coisas como estão é conhecida. Já passamos pela alternativa e sabemos muito bem como ela é. Por exemplo: a alternativa de um país sem políticos, ou com políticos cerceados por um poder mais alto e armado. Tivemos vinte anos desta alternativa e quem tem saudade dela precisa ser constantemente lembrado de como foi. Não havia corrupção? Havia, sim, não havia era investigação para valer. Havia prepotência, havia censura à imprensa, havia a Presidência passando de general para general sem consulta popular, repressão criminosa à divergência, uma política econômica subserviente e um “milagre” econômico enganador. Quem viveu naquele tempo lembra que as ordens do dia nos quartéis eram lidas e divulgadas como éditos papais para orientar os fiéis sobre o “pensamento militar”, que decidia nossas vidas.
Ao contrario da morte, de uma ditadura se volta, preferencialmente com uma lição aprendida. E, se para garantir que a alternativa não se repita, é preciso cuidar para não desmoralizar demais a política e os políticos, que seja. Melhor uma democracia imperfeita do que uma ordem falsa, mas incontestável. Da próxima vez que desesperar dos nossos políticos, portanto, e que alguma notícia de Brasília lhe enojar, ou você concluir que o país estaria melhor sem esses dirigentes e representantes que só representam seus interesses, e seus bolsos, respire fundo e pense na alternativa.
Sequer pensar que a alternativa seria preferível — como tem gente pensando — equivale a um suicídio cívico. Para mudar isso aí, prefira a vida — e o voto.

terça-feira, 25 de junho de 2013

o acento das manifestações

Nas últimas duas semanas, o assunto principal das/nas salas de aula tem sido as manifestações Brasil a fora. Naturalmente os estudantes — pelo menos os da rede pública — entraram de corpo e alma no movimento. E eles, também naturalmente, vêm perguntar aos professores o que estes estão achando disso. Na “sala de professores”, o assunto também não tem sido outro. Ocorre que, desde meados da semana passada, quando a revogação do aumento das passagens não se mostrou bastante diante de uma pauta imensa de reivindicações, tornou-se evidente que as manifestações tinham tomado outro rumo e ganhando nova força, difícil de precisar, mas claramente direcionados — rumo e força — contra a vaga entidade denominada governo. Não é preciso ter lido Foucault para saber o que se movia, e continua se movendo, por detrás disso, pelo menos em se tratando de Brasil. Então, na sexta-feira, diante de alunos empolgados com as novas manifestações contra “tudo”, sugeri, diante de uma queixa contra o novo acordo ortográfico, que isso se tornasse também uma pauta de reivindicações, e sugeri um brado de ordem: “Idéia com acento!”, “Idéia com acento!”. Naturalmente todos riram, e talvez alguém tenha somado o riso à ironia. O fato é que, naquela mesma noite, uma nova onda de saques se verificou, transmitida ao vivo pela TV, seguida por um domingo solar de esperança e muita violência. O corolário óbvio disso tudo é que não somos europeus, nem mesmo em manifestações. E quem continua chamando para as ruas deve saber que não dá para separar manifestação de arrastão: tudo, em última instância, é manifestação, embora por demandas diferentes. É preciso democratizar o conceito de povo, para poder pensar efetivamente em democracia.

O POPULAR
Luis Fernando Verissimo

Um número recente da ‘Veja’ trazia fotografias sensacionais das (como diria um inglês) “incomodações” na Irlanda do Norte. Todas eram de ganhar prêmio, mas uma me impressionou especialmente. Nela aparecia a versão irlandesa do Popular.  
É uma figura que sempre me intrigou. A foto da ‘Veja’ mostra um soldado inglês espichado na calçada, protegido pela quina de um prédio, o rosto tapado por uma máscara de gás, fazendo pontaria contra um franco-atirador local. Atrás dele, agachados no vão de uma porta, dois ou três dos seus companheiros, também em plena parafernália de guerra, esperam tensamente para entrar no tiroteio. Há fumaça por todos os lados, um clima de medo e drama. Mas ao lado do soldado que atira, em primeiro plano, está o Popular. De pé, olhando com algum interesse o que se passa, com as mãos nos bolsos e um embrulho embaixo do braço. O Popular foi no armazém e na volta parou para ver a guerra. 
Sempre pensei que o Popular fosse uma figura exclusivamente brasileira. Nas nossas incomodações políticas, no tempo em que ainda havia política no Brasil, o Popular não perdia uma. Os jornais mostravam tanques na Cinelândia protegidos por soldados de baioneta calada e lá estava o Popular, com um embrulho embaixo do braço, examinando as correias de um dos tanques. Pancadaria na Avenida? Corria polícia, corria manifestante, corria todo mundo, menos o Popular. O Popular assistia. Cheguei a imaginar, certa vez, uma série de cartuns em que o Popular aparecia assistindo ao Descobrimento do Brasil, à Primeira Missa, ao Grito da Independência, à Proclamação da República... Sempre com seu embrulho debaixo do braço. E de camisa esporte clara para fora das calças. (O Popular irlandês veste terno e sobretudo contra o frio. O Popular tropical é muito mais Popular.) 
Não se deve confundir o Popular com o Transeunte, também conhecido como o Passante. O Transeunte ou Passante às vezes leva uma bala perdida, o Popular nunca. O Transeunte às vezes vai preso por engano, o Popular é o que fica assistindo à sua prisão. O Transeunte, não raro, se compromete com os acontecimentos. Aplaude o visitante ilustre que passa, por exemplo. O Popular fica com as mãos nos bolsos e quase sempre presta mais atenção ao motociclo dos batedores do que à figura ilustre. O Transeunte pode se entusiasmar momentaneamente com uma frase de comício ou um drama na rua, e aí o Popular é que fica olhando para o Transeunte.
O Popular não tem opinião sobre as coisas. Quando o rádio ou a televisão resolvem ouvir “a opinião de um popular” na rua, sempre se enganam. O Popular nunca é o entrevistado, é o sujeito que está atrás do entrevistado, olhando para a câmara.
O Popular não merece nem os méritos nem a calhordice que a imprensa lhe atribui. Alguém que é “socorrido por populares”, outro, menos feliz, que é linchado por populares... Engano. Onde há um bando de populares não há o Popular. O Popular é a antimultidão. Sua única virtude é a sua singularidade. E um certo ceticismo inconsciente diante da História e das coisas. Não é que o Popular desmereça o Poder e os grandes lances da Humanidade, é que ele tem uma fatal curiosidade pelo detalhe supérfluo, um fascínio irresistível pelo insignificante. Nas revoluções, o que atrai o Popular é a estranha postura de um soldado deitado no chão, o mecanismo de um tanque, as lentes de uma câmara. 
O Popular é uma figura tipicamente urbana. Não tem domicílio certo. Seu habitat natural é a margem dos acontecimentos. E este é o seu maior mistério, a chave da sua existência ninguém jamais conseguiu descobrir o que o Popular leva naquele embrulho. E tem mais. O dia em que pegarem um Popular para desvendarem um mistério, será inútil. Vão se enganar outra vez. O Popular verdadeiro estará atrás do preso, assistindo a tudo.

Luis Fernando Verissimo. O popular. 3.ed. Porto Alegre: L&PM, 1984, p.11-13. [1ª edição: 1973]

quarta-feira, 6 de março de 2013

Mário Quintana

Crime & castigo

O remorso é quando o filme (silencioso) da memória põe-se a repetir a mesma cena e fica o pobre ator a representá-la para sempre.
Um exemplo? Aí vai ele. É um simples faz de conta: não te assustes. Estás à cabeceira da tua velha tia Filomena e eis que resolves apressar-lhe a herança. Tinhas de dar-lhe cinco gotas de meia em meia hora e dá-lhes cinquenta de supetão. Ora, o que vês na tela implacável é a contagem das primeiras gotas inocentes... e agora não podes, não podes nunca mais parar!
Será isso o inferno? Esse inevitável mecanismo de repetição?
Em todo caso, todos já devem estar mais ou menos preparados para esses requintes infernais, graças àquele famoso disco em que o cantor repete umas 37 ou 38 vezes, sem ao menos variar de entonação: ― Eu te amo! Eu te amo! Eu te...
Neste ponto, um anjo segreda-me sonsamente ao ouvido:
― Mas quem sabe se a gravação não estará com defeito?

Mário Quintana. A vaca e o hipogrifo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p.225. 

domingo, 3 de março de 2013

Clarice Lispector

OS RECURSOS DE UM SER PRIMITIVO

Li uma vez que os movimentos histéricos tendem a uma libertação por meio de um desses movimentos. A ignorância do movimento exato, que seria o libertador, torna o animal histérico, isto é, ele apela para o descontrole. E, durante o sábio descontrole, um dos movimentos sucede ser o libertador.
Isso me faz pensar nas vantagens libertadoras de uma vida apenas primitiva, apenas emocional. A pessoa primitiva apela, como que histericamente, para tantos sentimentos contraditórios que o sentimento libertador termina vindo à tona, apesar da ignorância da pessoa.

Clarice Lispector. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.254.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

garrafas ao mar: a víbora manda lembranças

Enquanto assistia ao documentário sobre Joel Silveira, lembrei-me de uma crônica dele lida já faz tempo ― e a memória, seletiva, guardou resquícios desta e mais duas ou três ― em que ele relatava estar andando sozinho num frio dezembro europeu (não me recordo a cidade, e talvez seja só minha a impressão de que era Natal) e deparou-se, de repente, num vitrine de livraria, com um livro da Clarice Lispector ― creio que Perto do coração selvagem, se a memória estiver me ajudando ―, e então ele sentiu seu coração subitamente aquecido, por aquele encontro, por encontrar alguém familiar na fria distância em que se encontrava, por encontrar uma garrafa lançada ao mar. Escrever é imperioso ― este é o maior testemunho que ficou da brilhante geração modernista de cronistas e repórteres brasileiros, porque a literatura era uma espécie de morada, parada obrigatória deles e delas.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

deus hipotético (por luis fernando verissimo)


Na crônica de Luis Fernando Verissimo publicada pelo O Globo no último domingo, “Deus hipotético”, além da coragem e humor habituais, chama atenção o trecho: “Há aquela parábola do Dostoievski sobre o encontro do Grande Inquisidor com Jesus Cristo, que volta à Terra ― o filho da hipótese tornado homem ― para salvar a humanidade outra vez, já que da primeira vez não deu certo. Os dois conversam na cela onde Cristo foi metido por estar perturbando a ordem pública, e o Grande Inquisidor não demora a perceber que a pregação do homem ameaçará, antes de mais nada, a própria Igreja, a religião institucionalizada e os privilégios do poder.” Uma ideia perversa e atravessou o pensamento: se a ficção não seria também de um cristianismo genuíno, ou seja, era uma vez um homem, dito filho de Deus, que tentou pregar a justiça social, mas isso não deu muito certo, e este homem acabou morto, e então é até possível lutar contra um mundo socialmente injusto, mas trata-se de uma luta vã... Verissimo não citou Dostoievski em vão.

domingo, 20 de janeiro de 2013

Mário Quintana: terceiras intenções (ou a fratria em perigo)

INTENÇÕES

Os que andam com segundas intenções não conseguem enganar ninguém. Está na cara... O perigo mesmo ― porque é invisível ― está nos que têm terceiras intenções.

Mário Quintana. A vaca e o hipogrifo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p.48 



sábado, 19 de janeiro de 2013

as minhas janelas

Ao percorrer um livro de crônicas, que adquiri com o fito de escolher a leitura dos alunos para o próximo ano letivo, encontrei um texto de memória antiga, de Cecília Meireles. Achava inclusive que o título era “As minhas janelas”, e de forma alguma ligava-o ao nome de Cecília. Atribuía-o vagamente à Lygia Fagundes Teles. No horizonte, de todo modo, o feminino.
A crônica é singela, e se ficou guardada esses anos todos é porque alguma coisa da escola está muito viva dentro de mim. Esse texto ficou. Ontem, quase três décadas depois, eu reencontrei-o, com o espantoso título de “A arte de ser feliz”.
E então, à medida que ia lendo, e reconhecendo, senti a comoção do reencontro com quem fui. Quem fui acreditou nesse texto, acreditou que era assim, simples, bastava trazer em si um pouco de pureza e honestidade. Bastava. Inclusive para acreditar. Tudo contribuía para que o texto, em sua delicada singeleza, afastasse qualquer possibilidade de ironia.
Sobretudo, descobri ao reencontrá-lo que o que se inseriu entre o hoje e esse texto, entre quem sou e quem fui, foi a violência. Não sei se esse texto resiste a ela. Mas é bom poder tê-lo lido num tempo de inocência, que possibilitou acreditar nele. É bom ter vivido esse tempo de inocência.

A arte de ser feliz
Cecília Meireles

Houve um tempo em que a minha janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul. Nesse ovo costumava pousar um pombo branco. Ora, nos dias límpidos, quando o céu ficava da mesma cor do ovo de louça, o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa e sentia-me completamente feliz.
Houve um tempo em que a minha janela dava para um canal. No canal oscilava um barco. Um barco carregado de flores. Para onde iam aquelas flores? Quem as comprava? Em que jarra, em que sala, diante de quem brilhariam, na sua breve existência? E que mãos as tinham criado? E que pessoas iam sorrir de alegria ao recebê-las? Eu não era mais criança, porém a minha alma ficava completamente feliz.
Houve um tempo em que minha janela se abria para um terreiro, onde uma vasta mangueira alargava sua copa redonda. À sombra da árvore, numa esteira, passava quase todo o dia sentada uma mulher, cercada de crianças. E contava histórias. Eu não podia ouvir da altura da janela; e mesmo que a ouvisse, não a entenderia, porque isso foi muito longe, num idioma difícil. Mas as crianças tinham tal expressão no rosto,  às vezes faziam com as mãos arabescos tão compreensíveis, que eu participava do auditório, imaginava os assuntos e suas peripécias e me sentia completamente feliz.
Houve um tempo em que a minha janela se abria sobre uma cidade que parecia feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.  Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. Às vezes, um galo canta.  Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz. 
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.

Boa companhia: crônica. Org. Humberto Werneck. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p.175-176. 

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Mário Quintana

TRÁGICO ACIDENTE DE LEITURA

Tão comodamente que eu estava lendo, como quem viaja num raio de lua, num tapete mágico, num trenó, num sonho. Nem lia: deslizava. Quando de súbito a terrível palavra apareceu, apareceu e ficou, plantada ali diante de mim, focando-me: ABSCÔNDITO. Que momento passei!… O momento de imobilidade e apreensão de quando o fotógrafo se posta atrás da máquina, envolvidos os dois no mesmo pano preto, como um duplo monstro misterioso e corcunda… O terrível silêncio do condenado ante o pelotão de fuzilamento, quando os soldados dormem na pontaria e o capitão vai gritar: Fogo!

Mário Quintana. Nova antologia poética. São Paulo: Globo, 2007, p.97.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

DECLARAÇÃO DE AMOR - Clarice Lispector

Esta é uma confissão de amor: amo a língua portuguesa. Ela não é fácil. Não é maleável. E, como não foi profundamente trabalhada pelo pensamento, a sua tendência é a de não ter sutilezas e de reagir às vezes com um verdadeiro pontapé contra os que temerariamente ousam transformá-la numa linguagem de sentimento e de alerteza. E de amor. A língua portuguesa é um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve tirando das coisas e das pessoas a primeira capa de superficialismo.
Às vezes ela reage diante de um pensamento mais complicado. Às vezes se assusta com o imprevisível de uma frase. Eu gosto de manejá-la – como gostava de estar montada num cavalo e guiá-lo pelas rédeas, às vezes lentamente, às vezes a galope.
Eu queria que a língua portuguesa chegasse ao máximo nas minhas mãos. E este desejo todos os que escrevem têm. Um Camões e outros iguais não bastaram para nos dar para sempre uma herança de língua já feita. Todos nós que escrevemos estamos fazendo do túmulo do pensamento alguma coisa que lhe dê vida.
Essas dificuldades, nós as temos. Mas não falei do encantamento de lidar com uma língua que não foi aprofundada. O que recebi de herança não me chega.
Se eu fosse muda, e também não pudesse escrever, e me perguntassem a que língua eu queria pertencer, eu diria: inglês, que é preciso e belo. Mas como não nasci muda e pude escrever, tornou-se absolutamente claro para mim que eu queria mesmo era escrever em português. Eu até queria não ter aprendido outras línguas: só para que a minha abordagem do português fosse virgem e límpida.

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo: crônicas. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.100-101.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Clarice Lispector

SEGUIR A FORÇA MAIOR

É determinismo, sim. Mas seguindo o próprio determinismo é que se é livre. Prisão seria seguir um destino que não fosse o próprio. Há uma grande liberdade em se ter um destino. Esse é o nosso livre-arbítrio.

Clarice Lispector. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.140.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Clarice Lispector

SEGUIR A FORÇA MAIOR

É determinismo, sim. Mas seguindo o próprio determinismo é que se é livre. Prisão seria seguir um destino que não fosse o próprio. Há uma grande liberdade em se ter um destino. Este é o nosso livre-arbítrio.

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.140.