Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
sábado, 29 de junho de 2013
Graciliano Ramos: Pequena história da República (trecho)
1922
Em
começo de 1920 vários municípios sertanejos da Bahia sublevaram-se. Para evitar
luta, o governo contemporizou, entrou em combinações com os chefes rebeldes.
Em março ocorreram na capital
federal manifestações de operários, logo abafadas severamente. 1921 principiou
com agitações deste gênero: greve de trabalhadores marítimos, greves dos
operários de construção. E o desassossego aumentou durante a campanha da
sucessão, culminou em 1922 com demonstrações de indisciplina e revolta.
É curioso notar que isso não
ficava apenas em comício, com discurso e tiro. Havia indisciplina em toda
parte: nos quartéis, nas fábricas, nos atelieres,
nos cafés, nos quartos de pensão onde sujeitos escrevem. E a revolta, meio
indefinida, tomando aqui uma forma, ali outra, manifestava-se contra o oficial,
que exige a continência, e o contra o mestre-escola, que impõe a regra. A autoridade
perigava.
Afastou-se o pronome do lugar
que ele sempre tinha ocupado por lei. Ausência de respeito a qualquer lei.
Com certeza seria melhor
deslocar o deputado, o senador e o presidente. Como estes símbolos, porém,
ainda resistissem, muito revolucionário se contentou mexendo com outros mais
modestos. Não podendo suprimir a constituição, arremessou-se à gramática.
5 de julho
A
eleição realizada em março de 22 foi um desastre, como de ordinário. Vencedor o
candidato do governo. Pílulas. Continuação da mágica besta; a chapa entregue ao
eleitor encabrestado e metido na urna, ata fabricada pelo coronel, o Congresso
examinando todas as patifarias e arranjando uma conta para a personagem
escolhida empossar-se.
Francamente, aquilo não tinha
graça. No começo da República, ainda, ainda: mas agora estava muito visto,
muito batido, não inspirava confiança. Necessário reformar tudo.
Como? Ninguém sabia direito o
que viria, mas todos concordavam num ponto: não podia vir coisa pior que o que
tínhamos. Muito brilho por fora: visita de reis, exposição, projetos de açudes,
universidade, numerosos hóspedes ilustres. Por dentro era aquela miséria:
doença, ignorância, o coronel safado a mandar, assassino e ladrão.
E alguns rapazes se levantaram,
no forte de Copacabana, a 5 de julho de 1922. Mas houve defecções. O marechal
Hermes, implicado no movimento, deixou-se prender. Ficaram em Copacabana
dezoito doidos que afrontaram a tropa, comandados por Siqueira Campos.
O centenário
Depois
disso veio o estado de sítio, com muita prisão. Em seguida fizeram-se grandes
festas para solenizar o centenário da Independência.
RAMOS,
Graciliano. Alexandre e outros heróis. 56.ed. Rio de Janeiro: Record, 2012, p.180-182.
terça-feira, 25 de junho de 2013
o acento das manifestações
Nas últimas duas semanas, o assunto principal das/nas
salas de aula tem sido as manifestações Brasil a fora. Naturalmente os
estudantes — pelo menos os da rede pública — entraram de corpo e alma no
movimento. E eles, também naturalmente, vêm perguntar aos professores o que
estes estão achando disso. Na “sala de professores”, o assunto também não tem
sido outro. Ocorre que, desde meados da semana passada, quando a revogação do
aumento das passagens não se mostrou bastante diante de uma pauta imensa de
reivindicações, tornou-se evidente que as manifestações tinham tomado outro
rumo e ganhando nova força, difícil de precisar, mas claramente direcionados —
rumo e força — contra a vaga entidade denominada governo. Não é preciso ter lido Foucault para saber o que se movia,
e continua se movendo, por detrás disso, pelo menos em se tratando de Brasil.
Então, na sexta-feira, diante de alunos empolgados com as novas manifestações
contra “tudo”, sugeri, diante de uma queixa contra o novo acordo ortográfico,
que isso se tornasse também uma pauta de reivindicações, e sugeri um brado de
ordem: “Idéia com acento!”, “Idéia com acento!”. Naturalmente todos riram, e
talvez alguém tenha somado o riso à ironia. O fato é que, naquela mesma noite,
uma nova onda de saques se verificou, transmitida ao vivo pela TV, seguida por
um domingo solar de esperança e muita violência. O corolário óbvio disso tudo é
que não somos europeus, nem mesmo em manifestações. E quem continua chamando
para as ruas deve saber que não dá para separar manifestação de arrastão: tudo,
em última instância, é manifestação, embora por demandas diferentes. É preciso
democratizar o conceito de povo, para poder pensar efetivamente em democracia.
O POPULAR
Luis Fernando Verissimo
Um número
recente da ‘Veja’ trazia fotografias sensacionais das (como diria um inglês)
“incomodações” na Irlanda do Norte. Todas eram de ganhar prêmio, mas uma me
impressionou especialmente. Nela aparecia a versão irlandesa do Popular.
É uma figura
que sempre me intrigou. A foto da ‘Veja’ mostra um soldado inglês espichado na
calçada, protegido pela quina de um prédio, o rosto tapado por uma máscara de
gás, fazendo pontaria contra um franco-atirador local. Atrás dele, agachados no
vão de uma porta, dois ou três dos seus companheiros, também em plena
parafernália de guerra, esperam tensamente para entrar no tiroteio. Há
fumaça por todos os lados, um clima de medo e drama. Mas ao lado do soldado que
atira, em primeiro plano, está o Popular. De pé, olhando com algum interesse o
que se passa, com as mãos nos bolsos e um embrulho embaixo do braço. O Popular
foi no armazém e na volta parou para ver a guerra.
Sempre pensei
que o Popular fosse uma figura exclusivamente brasileira. Nas nossas
incomodações políticas, no tempo em que ainda havia política no Brasil, o
Popular não perdia uma. Os jornais mostravam tanques na Cinelândia protegidos
por soldados de baioneta calada e lá estava o Popular, com um embrulho embaixo
do braço, examinando as correias de um dos tanques. Pancadaria na Avenida?
Corria polícia, corria manifestante, corria todo mundo, menos o Popular. O
Popular assistia. Cheguei a imaginar, certa vez, uma série de cartuns em que o
Popular aparecia assistindo ao Descobrimento do Brasil, à Primeira Missa, ao
Grito da Independência, à Proclamação da República... Sempre com seu
embrulho debaixo do braço. E de camisa esporte clara para fora das calças. (O
Popular irlandês veste terno e sobretudo contra o frio. O Popular tropical é
muito mais Popular.)
Não se deve
confundir o Popular com o Transeunte, também conhecido como o Passante. O
Transeunte ou Passante às vezes leva uma bala perdida, o Popular nunca. O
Transeunte às vezes vai preso por engano, o Popular é o que fica assistindo à
sua prisão. O Transeunte, não raro, se compromete com os acontecimentos.
Aplaude o visitante ilustre que passa, por exemplo. O Popular fica com as mãos
nos bolsos e quase sempre presta mais atenção ao motociclo dos batedores do que
à figura ilustre. O Transeunte pode se entusiasmar momentaneamente com uma
frase de comício ou um drama na rua, e aí o Popular é que fica olhando para o
Transeunte.
O Popular não
tem opinião sobre as coisas. Quando o rádio ou a televisão resolvem ouvir
“a opinião de um popular” na rua, sempre se enganam. O Popular nunca é o
entrevistado, é o sujeito que está atrás do entrevistado, olhando para a
câmara.
O Popular não
merece nem os méritos nem a calhordice que a imprensa lhe atribui. Alguém que é
“socorrido por populares”, outro, menos feliz, que é linchado por populares...
Engano. Onde há um bando de populares não há o Popular. O Popular é a
antimultidão. Sua única virtude é a sua singularidade. E um certo ceticismo
inconsciente diante da História e das coisas. Não é que o Popular desmereça o
Poder e os grandes lances da Humanidade, é que ele tem uma fatal curiosidade
pelo detalhe supérfluo, um fascínio irresistível pelo insignificante. Nas
revoluções, o que atrai o Popular é a estranha postura de um soldado deitado no
chão, o mecanismo de um tanque, as lentes de uma câmara.
O Popular é
uma figura tipicamente urbana. Não tem domicílio certo. Seu habitat natural é a
margem dos acontecimentos. E — este é o seu maior mistério, a chave da
sua existência — ninguém jamais conseguiu descobrir o que o Popular leva
naquele embrulho. E tem mais. O dia em que pegarem um Popular para desvendarem
um mistério, será inútil. Vão se enganar outra vez. O Popular verdadeiro estará
atrás do preso, assistindo a tudo.
Luis Fernando
Verissimo. O popular. 3.ed. Porto
Alegre: L&PM, 1984, p.11-13. [1ª edição: 1973]
domingo, 23 de junho de 2013
o futebol como metáfora (incômoda) do país, ou os pés de barro da pátria de chuteiras
“É importante
saber que a tia Fifa não é como é por insensibilidade ou elitismo desvairado.
Suas exigências, que parecem irrealistas, obedecem a um desejo de ordem social
e estética. A tia Fifa sonha com um mundo limpo, em que as desigualdades entre
ricos e pobres desaparecem desde que todos sigam as mesmas regras e tenham o
mesmo gosto, e por isso a convidam.” (Luis Fernando Verisssimo, hoje, n’O Globo)
“[...] o jogo de
Neymar ensina que o movimento emaranhado das ruas tem de achar o jeito
inspirado de acertar no melhor. Que saibamos chegar ao mais bonito.” (Caetano Veloso, hoje, n’O Globo)
“Diz o escritor inglês Alex Bellos que, se para
os europeus os marcos da memória histórica do século XX são dados pelas
Guerras, no Brasil são dados pelas Copas do Mundo. A afirmação sinaliza de
maneira ambivalente o quanto a paixão do futebol deu forma à identidade e à
memória coletiva brasileira, ao mesmo tempo em que sugere o quanto ela é
pautada tradicionalmente pelo jogo, pelo lúdico, e não pelo enfrentamento das
realidades. A comparação ganha uma outra atualidade agora, quando o ensaio da
Copa do Mundo através da Copa das Confederações vem acompanhado de uma guerra,
real e simbólica, onde está em jogo o custo social da tarifa de ônibus, o custo
social da Copa do Mundo, o custo social e político do Brasil. Uma inesperada
junção à maneira brasileira de guerra com Copa, por isso mesmo muito nova.” (José Miguel Wisnik, ontem, n’O Globo)
um comentário lido na internet e uma visita ao "cronisias"
“O pequenino dinossauro, fofinho, está crescendo. Está ameaçando o laboratório e os funcionários. Espero que quem o incubou ainda o tenha sob controle.”
"algumas 'charges' e uma fotografia" (aqui)
Assinar:
Postagens (Atom)