Na última aula de natação o
professor falava, em tom de blague, sobre ser xingado quando aumenta muito o
nível de exigência. Ao que eu disse: “Felizmente a água não escuta palavrões.”
Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
sábado, 8 de dezembro de 2012
quinta-feira, 6 de dezembro de 2012
acalmando a respiração
Hoje nadei, foi bom, só eu e a água,
que aceita silenciosa e generosa minha presença. Depois saí para ir ao médico, mas coisas desencontradas aconteceram, e eu tomei um táxi e voltei para casa.
Clarice Lispector
Uma amizade sincera
Não
é que fôssemos amigos de longa data. Conhecemo-nos apenas no último ano da
escola. Desde esse momento estávamos juntos a qualquer hora. Há tanto tempo
precisávamos de um amigo que nada havia que não confiássemos um ao outro.
Chegamos a um ponto de amizade que não podíamos mais guardar um pensamento: um
telefonava logo ao outro, marcando encontro imediato. Depois da conversa,
sentíamo-nos tão contentes como se nos tivéssemos presenteado a nós mesmos.
Esse estado de comunicação contínua chegou a tal exaltação que, no dia em que
nada tínhamos a nos confiar, procurávamos com alguma aflição um assunto. Só que
o assunto havia de ser grave, pois em qualquer um não caberia a veemência de
uma sinceridade pela primeira vez experimentada.
Já
nesse tempo apareceram os primeiros sinais de perturbação entre nós. Às vezes um telefonava, encontrávamo-nos, e
nada tínhamos a nos dizer. Éramos muito jovens e não sabíamos ficar calados.
De início, quando começou a faltar assunto, tentamos comentar as pessoas. Mas
bem sabíamos que já estávamos adulterando o núcleo da amizade. Tentar falar
sobre nossas mútuas namoradas também estava fora de cogitação, pois um homem
não falava de seus amores. Experimentávamos ficar calados – mas tornávamo-nos
inquietos logo depois de nos separarmos.
Minha
solidão, na volta de tais encontros, era grande e árida. Cheguei a ler livros
apenas para poder falar deles. Mas uma amizade sincera queria a sinceridade
mais pura. À procura desta, eu começava a me sentir vazio. Nossos encontros
eram cada vez mais decepcionantes. Minha sincera pobreza revelava-se aos
poucos. Também ele, eu sabia, chegara ao impasse de si mesmo.
Foi
quando, tendo minha família se mudado para São Paulo, e ele morando sozinho,
pois sua família era do Piauí, foi quando o convidei a morar em nosso
apartamento, que ficara sob a minha guarda. Que rebuliço de alma. Radiantes,
arrumávamos nossos livros e discos, preparávamos um ambiente perfeito para
a amizade. Depois de tudo pronto – eis nos dentro de casa, de braços abanando,
mudos, cheios apenas de amizade.
Queríamos
tanto salvar o outro. Amizade é matéria de salvação.
Mas
todos os problemas já tinham sido tocados, todas as possibilidades estudadas.
Tínhamos apenas essa coisa que havíamos procurado sedentos até então e enfim
encontrado: uma amizade sincera. Único modo, sabíamos, e com que amargor
sabíamos, de sair da solidão que um espírito tem no corpo.
Mas
como se nos revelava sintética a amizade. Como se quiséssemos espalhar em longo
discurso um truísmo que uma palavra esgotaria. Nossa amizade era tão insolúvel
como a soma de dois números: inútil querer desenvolver para mais de um momento
a certeza de que dois e três são cinco.
Tentamos
organizar algumas farras no apartamento, mas não só os vizinhos reclamaram como
não adiantou.
Se
ao menos pudéssemos prestar favores um ao outro. Mas nem havia oportunidade,
nem acreditávamos em provas de uma amizade que delas não precisava. O mais que
podíamos fazer era o que fazíamos: saber que éramos amigos. O que não bastava
para encher os dias, sobretudo as longas férias.
Data
dessas férias o começo da verdadeira aflição.
Ele,
a quem eu nada podia dar senão minha sinceridade, ele passou a ser uma acusação
de minha pobreza. Além do mais, a solidão de um ao lado do outro, ouvindo
música ou lendo, era muito maior do que quando estávamos sozinhos. E, mais que
maior, incômoda. Não havia paz. Indo
depois cada um para seu quarto, com alívio nem nos olhávamos.
É
verdade que houve uma pausa no curso das coisas, uma trégua que nos deu mais
esperanças do que em realidade caberia. Foi quando meu amigo teve uma pequena
questão com a Prefeitura. Não é que fosse grave, mas nós a tornamos para melhor
usá-la. Porque então já tínhamos caído na facilidade de prestar favores. Andei
entusiasmado pelos escritórios de conhecidos de minha família, arranjando
pistolões para meu amigo. E quando começou a fase de selar papéis, corri por
toda a cidade – posso dizer em consciência que não houve firma que se
reconhecesse sem ser através de minha mão.
Nessa
época encontrávamo-nos de noite em casa, exaustos e animados: contávamos as
façanhas do dia, planejávamos os ataques seguintes. Não aprofundávamos muito o
que estava sucedendo, bastava que tudo isso tivesse o cunho da amizade. Pensei
compreender por que os noivos se presenteiam, por que o marido faz questão de dar
conforto à esposa, e esta prepara-lhe afanada o alimento, por que a mãe exagera
nos cuidados ao filho. Foi, aliás, nesse período que, com algum sacrifício, dei
um pequeno broche de ouro àquela que é hoje minha mulher. Só muito depois eu ia
compreender que estar também é dar.
Encerrada
a questão com a Prefeitura – seja dito de passagem, com vitória nossa –
continuamos um ao lado do outro, sem encontrar aquela palavra que cederia a
alma. Cederia a alma? mas afinal de contas quem queria ceder a alma? Ora essa.
Afinal
o que queríamos? Nada. Estávamos fatigados, desiludidos.
A
pretexto de férias com minha família, separamo-nos. Aliás ele também ia ao
Piauí. Um aperto de mão comovido foi o nosso adeus no aeroporto. Sabíamos que
não nos veríamos mais, senão por acaso. Mais que isso: que não queríamos nos
rever. E sabíamos também que éramos amigos. Amigos sinceros.
Clarice Lispector. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1988, p.13-16.
quarta-feira, 5 de dezembro de 2012
Orides Fontela (porque às vezes a voz que se deseja ouvir é a do perdedor)
TORRES
Construir torres
abstratas
porém a luta é
real. Sobre a luta
nossa visão se
constrói. O real
nos doerá para
sempre.
FONTELA, Orides. Poesia reunida. São Paulo: Cosac Naify:
Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006, p.37.
terça-feira, 4 de dezembro de 2012
memória sutil das coisas esquecidas (ou a ser)
Hoje, na
natação, quanta coisa pedida a uma simples porção de água! No entanto é lá que
meus monstros, em silêncio, vão aos poucos se desprendendo de mim. Talvez por
isso a sensação de que nada está acontecendo. Mas está: pela terceira vez
consecutiva, eu esqueci lá minha roupa de natação.
João Cabral de Melo Neto
O POEMA E A ÁGUA
As vozes líquidas do
poema
convidam ao crime
ao revólver.
Falam para mim de
ilhas
que mesmo os sonhos
não alcançam.
O livro aberto nos
joelhos
o vento nos cabelos
olho o mar.
Os acontecimentos de
água
põem-se a repetir
na memória.
MELO NETO, João Cabral de. Serial e antes. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1997, p.17.
segunda-feira, 3 de dezembro de 2012
domingo, 2 de dezembro de 2012
pensando dentro da lógica
Conversava com meu fisioterapeuta sobre a necessidade
de praticar exercícios físicos regularmente. Ele disse então que frequenta
academia desde os 18 anos, enquanto eu passei a frequentar os livros nesta
idade. Agora o corpo está se ressentindo do meu descaso, mandando recados
através de dores nada agradáveis, e limitadoras, já que preciso escolher onde
vai doer. A conversa transcorria devagar, e versava, assim, sobre as escolhas. Então ele disse: “Mas você
é mais culta que eu.” “Sim ― respondi ― mas você, por exemplo, não tem nenhuma
dor no cérebro.”
conforto espiritual (ou perdoando Deus, como a Clarice)
Uma amiga me escreve: “Entretanto, se você tiver um olhar
diferente para isso tudo, perceber como um grande aprendizado que vem ao teu
auxílio permitido por Deus e, enfim, relevar, será você
alguém mais feliz...”
não negociável
Tive uma amiga, pessoa ímpar, além de ser uma mulher bastante bonita e atraente, do tipo que os homens param para olhar na rua, pela beleza
não muito convencional. Isso, a palavra é esta: não convencional. Pois um dia,
e esta é uma das poucas falas que recordo dela, de nosso intenso convívio e
amizade, ela disse algo dessa ordem: “Separo do marido, mas não me separo de
meus livros.”
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