Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 18 de setembro de 2010

um trabalhador intelectual (acerca de Sérgio Buarque de Holanda)

Segue o trecho de um depoimento (entrevista) de Antonio Candido ao Jornal da USP, acerca de Sérgio Buarque de Holanda, no ano do centenário de seu nascimento (2002): "Era um grande trabalhador intelectual. Um homem de uma cultura imensa. Eu não sei se eu já vi alguém mais culto que Sérgio Buarque de Holanda. Veja que eu vivo num meio de gente culta, brasileiros e estrangeiros, e eu não sei se conheci alguém mais culto que Sérgio. [...] É isso que eu digo: são os contrastes de Sérgio Buarque. Ele estava sempre pronto para estudar, para pesquisar, mas também para ir a uma boate, para ir a um bar, a uma festa, para sair de casa, para jantar fora, tudo. Era só telefonar, ele ia atrás. E gostava muito de ouvir fofoca. Uma jovem assistente dele da faculdade me contou que ele ficava zangado quando ela não telefonava para ele depois que ele se aposentou, porque queria saber das fofocas da faculdade. Depois Sérgio me contava e eu falava: 'não quero ouvir'." (Leia a entrevista completa aqui).

Sérgio Buarque de Holanda e Vinicius de Moraes: episódios de uma amizade

Retrato de Vinicius

(entrevista a Sérgio Buarque de Holanda por Caio Túlio Costa)


Conheci o Vinicius, mesmo, fora de qualquer ligação intelectual literária; bom, ele já tinha publicado livros, eu não tinha publicado nenhum, embora fosse mais velho que ele. Tenho o segundo livro dele com uma dedicatória de 1935, e não era de um sujeito conhecido na hora não, era de uma pessoa que já conhecia antes. Pelo jeito da dedicatória se vê que não era novidade. De modo que pelo menos há 45 anos o conhecia. Eu ia muito ao Rio, durante algum tempo morei no Rio e ele vinha muito a São Paulo; no estrangeiro também nos encontramos várias vezes. Encontrei com ele na Itália, ele vinha em casa todas as noites tocar violão. Tenho a impressão que o Chico daí que pegou a coisa da música, ele ia escutar o Vinicius, e escondido, na hora em devia estar dormindo. Tinha oito anos (o Chico foi para a Itália com oito anos e voltamos quando ele tinha dez anos), ficava muito aceso, o Vinicius pensava que ele ia dormir, mas ele vinha escondido e mais de uma vez eu vi o Chico escondido para ouvir as músicas do Vinicius.
Vinicius foi a única pessoa que batizou uma das filhas do Chico, a mais velha, Silvia; que nasceu quando ele estava mais ou menos exilado na Itália. Ele não podia voltar para cá, foi em 1969. Lá nasceu a Silvia, tenho até uma gravação feita pelo poeta Ungaretti, que foi à casa de saúde:
 Sérgio, tu nipottina é bella!...
Faz um bruta elogio. Foi o Vinicius quem me trouxe a gravação do Ungaretti, eles estavam juntos lá.
A poesia dele é uma poesia coloquial... Ainda outro dia ouvi o Carlos Drummond falando. A gente não pode recitar a poesia dele assim com um tom poético, tem de ser uma coisa quase coloquial. Mas ele não começou assim. Na faculdade de direito, no Rio, ele tinha uma turma de colegas que depois ficaram importantes e numa posição totalmente diferente da dele, eram o Santiago Dantas que depois foi integralista; o Américo Jacobina Lacombe, o Octavio de Faria (este fez um livro sobre um livro de poemas de Vinicius); o Hélio Viana, todos do grupo chamado Caju. Mas ele logo se emancipou disto e foi para o lado oposto, até. A partir daí ele entrou para o lado da boemia. Começou a não ligar para a direita, era contrário, e conseguiu uma popularidade que raras pessoas hoje possuem. Ele tinha aquele jeito de tratar todo mundo com um certo charme pessoal.
Eu me lembro quando morávamos na Itália, tinha um amigo nosso que era Cônsul Geral em Roma, a mãe dele estava lá. Então ele deu uma reunião para vários cineastas. Tinha muitos, inclusive estudantes de cinema como o Rudá, filho do Oswald de Andrade. Convidaram o grupo para ir lá à noite. Para jantar convidaram-nos o Vinicius, minha mulher e eu porque a mesa era pequena para todo aquele pessoal. A mãe do anfitrião pediu por isso, que nós três fôssemos mais cedo. Já passava das nove horas quando o Vinicius chegou, atrasado, e sentou ao lado da senhora, e num instante quebrou-se o gelo.
― Mas que homem... ― ela dizia, esquecida do atraso. Ele agradava às pessoas, mas não agradava de propósito, era a maneira dele, naturalmente assim.
Depois ele passou para música, aí foi demitido do Itamaraty, no tempo do Costa e Silva; pediram que ele não fizesse mais shows, ou então largasse o Itamaraty.
― Então eu largo ― ele disse. Não, não foi cassado, foi uma coisa individual: não poder tocar a música que ele gostava.
O Vinicius passou dois meses em Roma, antes de assumir em Paris e ia todo dia em casa, eu era professor, dei curso na universidade. Ele ficou num hotel da Via Vittorio Veneto, onde se reuniam os atores, eu conto neste prefácio [do Operário em construção e outros poemas, Nova Fronteira] que cheguei um dia lá e o encontrei ao lado de Irene Papa (aquela do filme Z).
Numa dessas ocasiões apareceu um camarada mineiro, filósofo, que morreu agora. Era um sujeito muito diferente do Vinicius, muito sério. Ele e o Vinicius não davam certo. Não sei bem por que, pois o Vinicius tinha uma facilidade de se dar bem com as pessoas. Eu disse ao camarada: “Não o convido hoje porque já tenho compromisso”; era o Vinicius. “Vamos deixar para amanhã”.
― Não, amanhã vou jantar com o Cristiano Machado, embaixador no Vaticano, pode ser para depois de amanhã? ― foi a resposta. Eu disse que em princípio podia ser.
Aí chegou o Vinicius e eu disse que o camarada estava com vontade de vir, mas achei que os dois não combinavam bem, tão diferentes que eram, o outro era um sujeito brigão, tinha sido até boxeur. O Vinicius disse que eu tinha razão:
― Não vou com aquele sujeito não.
É raro ele ficar assim com outras pessoas. No dia seguinte o Vinicius apareceu e eu o lembrei que o camarada viria no outro dia. Disse ao Vinicius: se você quiser vir, venha, mas eu estou avisando: ele vem amanhã. No dia seguinte aparece o Vinicius. Aí eu disse: ah! você veio, né? Tá bem. O outro chegou tarde, às 9 horas, e jantamos juntos. Ele falando o tempo todo, metendo o pau numa moça que trabalhava num escritório comercial em Paris, onde ele teve que fazer qualquer coisa. E o Vinicius num silêncio mortal. Depois que ele saiu perguntei a razão daquele silêncio:
― Eu estava aqui, só não dei nele porque ele estava na sua casa.
― Mas por quê? ― eu perguntei.
― Porque ele estava falando mal de uma mulher.
― Mas você conhece a mulher?
― Não, eu não conheço, mas falar mal de mulher é coisa que não suporto.
Ele não admitia que ninguém falasse mal de mulher, fosse quem fosse. De modo que ele era assim um pouco desse jeito. Estávamos certa ocasião na casa de um dos grandes amigos dele daqui em São Paulo, o Zequinha Marques da Costa. Certa hora ele se levantou e foi lá para dentro. Nesse momento o Zequinha me convidou para ver alguns quadros que tinha lá. Entramos, vi um quarto.
― Ali deve estar dormindo o Vinicius ― disse o Zequinha ― evitemos falar alto quando passarmos por lá.
Passamos então pelo quarto enorme, uma cama de casal, e o Vinicius no meio dormindo. Eu disse: olha aqui, vamos fechar essa luz. E o Zequinha respondeu:
― Não, não, não, o Vinicius não quer. Ele quer a luz acesa porque assim fica com a impressão de que tem gente.
Ele morreu assim, com quantidade de gente em volta. Dizem que só no apartamento dele foram mais de mil pessoas sem estar avisadas. Havia toda aquela gente chorando, amigos...
Mas os médicos achavam que ele não ia durar muito não. Tinha diabete, inclusive; não parava de beber. Quando fiz essa coletânea [Operário em construção e outros poemas, Nova Fronteira] fui ao Rio, estava no hotel, o Vinicius foi lá para ver. Aí eu pedi um uísque e disse: eu não peço para você porque você não pode tomar.
― Uísque não ― respondeu ―, mas tomo vinho branco.
― Mas não faz mal?
― Não, o médico disse que não.
Sabe, enquanto nós estivemos lá (a última mulher dele, Gilda de Queirós Mattoso, também estava) ele tomou cinco garrafas de vinho branco. Bom, eu tomei um bocadinho, mas o grosso foi ele quem tomou.
Quanto aos poemas eu gosto de muita coisa dele. Quando comecei a fazer esta antologia ele queria tirar as poesias que têm música. Mas depois ele mesmo achou uma como este Samba em prelúdio. Às vezes eu gosto de uns poemas dele, às vezes gosto de outros. Gosto muito do Soneto da fidelidade, onde ele fala do amor, que “não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure”. Ele costumava dizer de brincadeira que mulher para ele dura três anos. Depois tem que mudar...
Este livro da Nova Fronteira foi quem pediu (sic) que eu fizesse uma antologia, uma introdução crítica. Agora não estou fazendo crítica literária, então resolvi fazer uma coisa sobre ele, a pessoa dele. Destas poesias faltam algumas que numa certa hora se perderam, em parte. Eu não sabia nem como construir e pedi que o Vinicius completasse, não incluí exatamente o Soneto da fidelidade. Fiz a seleção e este estava na outra lista, que se perdeu. Escolhi de diversos lugares, tem um soneto dedicado ao Neruda, foi o Vinicius quem me deu para sair aí, mas este não é um soneto novo, é antigo. Ele fez para o Neruda depois que ele chegou aqui. Havia perdido o soneto, de modo que não incluiu nos outros livros dele; é uma resposta ao Pablo Neruda. Ele o encontrou pouco depois e disse:
― Vamos publicar por causa disso.
É uma coisa inédita. Depois ele fez outro soneto para o Neruda, diferente deste. Queria publicar este aí porque era praticamente inédito. A outra parte disto foi uma antologia que saiu em Portugal, ele achava muito boa. Foi dali que eu tirei muita coisa, mas devolvi-lhe o volume português porque ele não tinha outro exemplar. Foi ele quem escolheu o título do livro. Eu ia fazer uma escolha, Antologia, qualquer coisa assim. Por ocasião da greve em São Bernardo ele foi lá e recitou isso para os operários. A letra tem algumas coisas sutis, muito sutis, como a história da tentação de Cristo pelo diabo. Mas o Lula, pelo menos, gostou muito.
No começo de sua carreira Vinicius jamais se indispôs pessoalmente com o grupo Caju, mas encontrou amigos do outro lado, grandes amigos, como o Rubem Braga, o Fernando Sabino, o Paulo Mendes Campos e o Otto Lara Resende ou os mais velhos, como Manuel Bandeira e Drummond. A poesia dele começou com a influência desse grupo, espiritualista. Não chegava a ser fascista não, embora alguns se fizessem integralistas, mas ele nunca foi isto não, foi até o contrário.
Os primeiros dois livros têm este lado individualista e meio espiritual, Caminho para a distância e Forma e exegese. Ele era muito moço ainda. Depois tem Ariana, a mulher, aí ele já estava mudando, foi tomando um tom mais lírico, mais amoroso, mais material talvez.
Os primeiros livros são desta fase espiritualista, depois ele descobriu que não era aquilo não, que gostava era de mulher. No meio dos primeiros tem muita coisa bonita, mas eram muito diferentes. Esta poesia lírica, junto com o Drummond e o Bandeira, formou uma espécie de trindade na poesia brasileira. O Murilo Mendes também tem um pouco. Uma tendência assim um pouco coloquial. A marca da experiência inglesa de Oxford parece-me ter sido decisiva para ele.
O traço social é visível em Operário em construção, é um pouco. Acho que ele estava caminhando para este lado, mas tinha muito o lado lírico, mulher no meio. Tinha as duas formas. Só as duas?

SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA: Encontros. Org. Renato Martins. Beco do Azougue, 2009, p. 168-173. (Publicado originalmente em Leia Livros, 1980)

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Cuitelinho

Emily Dickinson: "a natureza é o que sabemos / mas..."

A Natureza é o que sabemos
Mas a arte não diria ―
Tão cega é para o que é simples
Nossa Sabedoria.


Nature is what we know ―
Yet have no Art to say ―
So impotent our Wisdom is
To her Simplicity.

DICKINSON, Emily. Alguns poemas. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2008, p.66-67.

"é a parte que te cabe neste latifúndio"

Graciliano Ramos: "não há talento que resista à ignorância da língua..."

Trecho da entrevista concedida por Graciliano Ramos a Homero Senna, em 1944:

Consta que você, como Euclides da Cunha e Monteiro Lobato, é grande leitor de dicionários...
― Consta e é verdade. Dicionário, para mim, nunca foi apenas obra de consulta. Costumo ler e estudar dicionários. Como escritor, sou obrigado a jogar com as palavras. Logo, preciso conhecer seu valor exato...
― Acha isso uma qualidade?
― Não sei... O que sei é que não há talento que resista à ignorância da língua...

SENNA, Homero. República das letras. Entrevista com 20 grandes escritores brasileiros. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996, p. 206-207.

Graciliano Ramos: trabalho e profissão de escritor no Brasil

Trecho da entrevista concedida por Graciliano Ramos a Homero Senna:

 Já se pode viver, no Brasil, da profissão de escritor?
― Não creio. A última edição das minhas obras rendeu-me 50 contos. Da edição americana de Angústia, recebi 10 contos. Tenho também três livros traduzidos para o espanhol. Mas os negócios na Argentina e no Uruguai andaram mal. Como não tenho o hábito de freqüentar os suplementos e as revistas ilustradas, a literatura me rende pouco.
― Que outras atividades exerce?
― Trabalho no Correio da Manhã e sou inspetor de ensino secundário no Ginásio São Bento.
― Gosta do emprego que tem?
― É-me indiferente. Trata-se de uma sinecura como outra qualquer. Em todo caso, nunca tive uma falta nem tirei uma licença.
― E no Correio da Manhã, qual o seu serviço?
― Corrijo a gramática dos repórteres e noticiaristas.
― Trabalho cacete...
― Nem tanto.
― Gosta de jornalismo?
― Não. Nem me considero jornalista.
― Com essa vida de jornal, naturalmente dorme tarde...
― À uma hora, via de regra. E me levanto às sete.
― Nos seus livros trabalha, portanto, apenas de manhã.
― Exato. Até as onze, mais ou menos.
― E para trabalhar, exige um bom ambiente ou não liga a isso?
― Trabalho em qualquer parte. Angústia foi escrito em palácio, quando eu era diretor da Instrução Pública de Alagoas. São Bernardo, em péssimas condições, numa igreja. Qualquer canto me serve. Mas disponho, hoje, em casa, de uma confortável sala de trabalho: isso que os burgueses costumam chamar de “escritório”...
― Gosta da casa onde mora?
― Em qualquer lugar estou bem. Dei-me bem na cadeia... Tenho até saudades da Colônia Correcional. Deixei lá bons amigos.

SENNA, Homero. República das letras. Entrevista com 20 grandes escritores brasileiros. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996, p. 207-208. [1944]

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Luiz Ruffato

46. O prefeito não gosta que lhe olhem nos olhos

Isso ficamos sabendo logo no primeiro dia. O doutor Abdala, chefe do cerimonial, reuniu o pessoal da copa e avisou, Não vai ter perseguição não, eu garanto. “Ele” (quando o doutor Abdala falava “Ele”, imediatamente olhava para cima, e nós também, como se o prefeito estivesse observando a gente) “Ele” sabe que nem todos votaram nele. E daí? O que importa é o trabalho! É o que cada um sabe fazer de melhor. Portanto, não se preocupem, ninguém vai forçar ninguém a ir embora. Os que não se encaixarem nas novas normas serão transferidos. E só. E, simpaticão, continuou a discursama, chamando nós de “colega”, batendo no ombro de um e outro, explicando tintim por tintim as mudanças que “Ele” ia fazer na cidade, politicou, quando nem precisava, o homem já estava eleito mesmo, e falou que o prefeito era um sujeito legal, que ia acabar com a roubalheira, ia fazer uma administração voltada pros mais carentes, e que o prefeito e os funcionários da municipalidade, disse, éramos tudo uma coisa só e explicou finalmente do quê que o prefeito gostava e do que não gostava: que o café tinha que ser muito quente, pelando, nunca requentado, “Nunca!, entendido?”, com cinco gotas de adoçante Assugril, não se esqueçam, “Ele morre de medo de engordar!”; às vezes “Ele” tem uma dor de cabeça terrível, e nesses casos duas Neosaldinas, um copo de água fresca, “Vejam bem, fresca!, não gelada, fresca!”; a hora do almoço é sagrada, uma e meia da tarde, nem um minuto a mais, que isso deixa ele furioso; de sobremesa, uma fatia de abacaxi gelado, sem caroço, dividido em seis partes iguais, “Entenderam?, seis partes iguais! Meçam, se for preciso, mas as partes têm de ser rigorosamente iguais!”, e acompanhando o prato apenas um guardanapo, “Um!”, um garfo, uma faca; à tarde, o prefeito toma um lanchinho às três e meia, recomendação médica, problemas de gastrite, um comprimido de ranitidina com um gole de água... “... Fresca!, isso mesmo!”, uma bolacha de água-e-sal com chá, “Mas, pelo amor de deus, chá preto nunca!”, ervas naturais nacionais, erva-doce de preferência; quando “Ele” tiver de ficar até tarde no gabinete, deve mastigar alguma coisa antes do jantar, que não acontece antes das nove da noite, mas com esse vocês não precisam se preocupar, porque geralmente a última refeição “Ele” faz em restaurante, decisões ainda por tomar, algo ainda para discutir, “O prefeito atende pelo nome de trabalho”, “Ele” é desses sujeitos que gostam de tudo direito, preto no branco, “Então, amigos... Então, colegas: nada de fofoquinhas pelos corredores! Ao trabalho!” Por isso é esquisito esse falatório todo, esse tititi, que “Ele” tem conta no exterior, que “Ele” comprou um apartamento triplex nos Jardins, que “Ele” é o chefe da quadrilha que roubava os cofres da prefeitura... Pra mim, “Ele” é igual a todos os outros que passaram por aqui. E a mulher dele, dona Janice, é uma ótima pessoa. Veio aqui uma vez ver como o marido dela é tratado, gostou muito, comentou comigo até. Na época, o Taquinho estava desempregado, falei, a senhora me desculpe, mas, já que deu a liberdade, será que não arruma uma colocação pro meu afilhado, menino bom, trabalhador, mas não consegue emprego em lugar nenhum, por causa de que só tem o primário, coitado, Vamos ver, ela falou, e pediu pra assessora dela, doutora Andreza, anotar meu nome e solicitação. Passou tempos, já tinha até entregue a Deus, quando me chamaram no telefone, o chefe de gabinete da Administração Regional do Campo Limpo falou pro Taquinho se apresentar, “munido da carteira de trabalho”, no dia seguinte. Agora, está feliz da vida, todo mundo respeita ele: é o encarregado de conduzir o povo pra lá e pra cá pra bater palmas e na hora certa gritar o nome do prefeito e carregar “Ele” nas costas em troca de lanche com refresco e mais uma caixinha, cujo valor depende do dia e da importância do negócio. O Taquinho, que é assim uma espécie de segurança, já esteve várias vezes perto-pertinho do prefeito e confirmou: é proibidíssimo olhar pros olhos dele.

RUFFATO, Luiz. eles eram muitos cavalos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2001, p.96-98.

"Poema" - Ney Matogrosso


(para assistir diretamente no vimeo, link aqui)

terça-feira, 14 de setembro de 2010

"Ode aos Ratos" (Ney Matogrosso)

Chico Buarque - "Ode aos Ratos"

Em 2006, Chico Buarque levou o show da turnê "Carioca" até Belo Horizonte, no Palácio das Artes. Os ingressos para as quatro apresentações programadas se esgotaram no mesmo dia, e uma apresentação extra foi agendada (aqui o link da canção "Ode aos Ratos" na capital mineira, em excelente acústica ― a incorporação foi desativada).

Ode aos ratos 
Edu Lobo/Chico Buarque - 2001
Para o musical Cambaio, de Adriana e João Falcão

Rato de rua
Irrequieta criatura
Tribo em frenética proliferação
Lúbrico, libidinoso transeunte
Boca de estômago
Atrás do seu quinhão

Vão aos magotes
A dar com um pau
Levando o terror
Do parking ao living
Do shopping center ao léu
Do cano de esgoto
Pro topo do arranha-céu

Rato de rua
Aborígene do lodo
Fuça gelada
Couraça de sabão
Quase risonho
Profanador de tumba
Sobrevivente
À chacina e à lei do cão

Saqueador da metrópole
Tenaz roedor
De toda esperança
Estuporador da ilusão
Ó meu semelhante
Filho de Deus, meu irmão

Rato
Rato que rói a roupa
Que rói a rapa do rei do morro
Que rói a roda do carro
Que rói o carro, que rói o ferro
Que rói o barro, rói o morro
Rato que rói o rato
Ra-rato, ra-rato
Roto que ri do roto
Que rói o farrapo
Do esfarra-rapado
Que mete a ripa, arranca rabo
Rato ruim
Rato que rói a rosa
Rói o riso da moça
E ruma rua arriba
Em sua rota de rato

2001 © - Lobo Music Ltda e Marola Edições Musicais
Todos os direitos reservados 

"O lado oposto e outros lados" - Sérgio Buarque de Holanda (1926)

O LADO OPOSTO E OUTROS LADOS

Qualquer pessoa que compare o Brasil intelectual de hoje com o de dez anos atrás não pode deixar de observar uma divergência apreciável entre os dois momentos, não só nos pontos de vista que os conduzem como ainda mesmo nos indivíduos que os exprimem. Não quero insistir na caracterização dessa divergência, que me parece profunda, nem vejo em que poderia ser útil mostrando o motivo que me leva a preferir um ao outro.
Está visto que pra mim os que exprimem o momento atual neste ano de 1926 contam muito mais do que os de 1916. A gente de hoje aboliu escandalosamente, graças a Deus, aquele ceptismo bocó, o idealismo impreciso e desajeitado, a poesia “bibelô”, a retórica vazia, todos os ídolos da nossa intelligentsia, e ainda não é muito o que fez. Limitações de todos os lados impediam e impedem uma ação desembaraçada e até mesmo dentro do movimento que suscitou esses milagres têm surgido germens de atrofia que os mais fortes já começam a combater sem tréguas.
É indispensável para esse efeito romper com todas as diplomacias nocivas, mandar pro diabo qualquer forma de hipocrisia, suprimir as políticas literárias e conquistar uma profunda sinceridade pra com os outros e pra consigo mesmo. A convicção dessa urgência foi pra mim a melhor conquista até hoje do movimento que chamam de “modernismo”. Foi ela que nos permitiu a intuição de que carecemos, sob pena de morte, de procurar uma arte de expressão nacional.
Não se trata de combater o que já se extinguiu, e é absurdo que muitos cometem. Mesmo em literatura os fantasmas já não pregam medo em ninguém. O academismo, por exemplo, em todas as suas várias modalidades ― mesmo o academismo do grupo Graça Aranha-Ronald-Renato Almeida, mesmo o academismo de Guilherme de Almeida ― já não é mais um inimigo, porque ele se agita num vazio e vive à custa de heranças. As figuras mais representativas desse espírito acadêmico e mesmo as melhores (como é o caso dos nomes que citei) falam uma linguagem que a geração dos que vivem esqueceu há muito tempo.
Alguns de seus representantes ― refiro-me sobretudo a Guilherme de Almeida e a Ronald de Carvalho ―, graças  a essa inteligência aguda e sutil que foi o paraíso e foi a perda da geração a que eles pertencem, aparentaram por certo tempo responder às instâncias da nossa geração. Mas hoje logo à primeira vista se sente que falharam irremediavelmente. O mais que eles fizeram foi criar uma poesia principalmente brilhante: isso prova que sujeitaram apenas uma matéria pobre e sem densidade. De certo modo continuaram a tradição da poesia, da literatura “bibelô”, que nós detestamos. São autores que se acham situados positivamente do lado oposto e que fazem todo o possível para sentirem um pouco da inquietação da gente da vanguarda. Donde essa feição de obra trabalhada conforme esquemas premeditados, essa ausência de abandono e de virgindade que denunciam os seus livros. Toda a América e Raça seriam talvez bem mais significativos para a gente se não fosse visível a todo o momento a intenção dos seus autores de criarem dois poemas geniais. Essa intenção é sobretudo manifesta em Toda a América. É um dos aspectos que tornam mais lamentável e pretensioso o movimento inaugurado pelos nossos acadêmicos “modernizantes”. Houve um tempo em esses autores foram tudo quanto havia de bom na literatura brasileira. No ponto em que estamos hoje eles não significam mais nada para nós.
Penso naturalmente que poderemos ter em pouco tempo, que teremos com certeza, uma arte de expressão nacional. Ela não surgirá, é mais que evidente, de nossa vontade, nascerá muito mais provavelmente de nossa indiferença. Isso não quer dizer que nossa indiferença, sobretudo nossa indiferença absoluta, vá florescer por força nessa expressão nacional que corresponde à aspiração de todos. Somente me revolto contra muitos que acreditam possuir ela desde já no cérebro tal e qual deve ser, dizem conhecer de cor todas as suas regiões, as suas riquezas incalculáveis e até mesmo os seus limites e nos querem oferecer essa sobra em vez da realidade que poderíamos esperar deles. Pedimos um aumento de nosso império e eles nos oferecem uma amputação. (Não careço de citar aqui o nome de Tristão de Athayde, incontestavelmente o escritor mais representativo dessa tendência, que tem pontos de contato bem visíveis com a dos acadêmicos “modernizantes" que citei, embora seja mais considerável.)
O que idealizam, em suma, é a criação de uma elite de homens, inteligentes e sábios, embora sem grande contato com a terra e o povo ― é o que concluo por minha conta; não sei de outro jeito de se interpretar claramente o sentido de seus discursos ―, gente bem-intencionada e que esteja de qualquer modo à altura de nos impor uma hierarquia, uma ordem, uma experiência que estrangulem de vez esse nosso maldito estouvamento de povo moço e sem juízo. Carecemos de uma arte, de uma literatura, de um pensamento enfim, que traduzam um anseio qualquer de construção, dizem. E insistem sobretudo nessa panacéia abominável da construção. Porque para eles, por enquanto, nós nos agitamos no caos e nos comprazemos na desordem. Desordem do quê? É indispensável essa pergunta, porquanto a ordem perturbada entre nós não é decerto, não pode ser a nossa ordem; há de ser uma coisa fictícia e estranha a nós, uma lei morta, que importamos, senão do outro mundo, pelo menos do Velho Mundo. É preciso mandar buscar esses espartilhos pra que a gente aprenda a se fazer apresentável e bonito à vista dos outros. O erro deles está nisso de quererem escamotear a nossa liberdade que é, por enquanto pelo menos, o que temos de mais considerável, em proveito de uma detestável abstração inteiramente inoportuna e vazia de sentido. Não me lembro mais como é a frase que li num ensaio do francês Jean Richard Bloch e em que ele lamentava não ter nascido num país novo, sem tradições, onde todas as experiências tivessem uma razão de ser e onde uma expressão artística livre de compromissos não fosse uma ousadia inqualificável. Aqui há muita gente que parece lamentar não sermos precisamente um país velho e cheio de heranças onde se pudesse criar uma arte sujeita a regras e a ideias prefixados.
Não é para nos felicitarmos que esse modo de ver importado diretamente da França, da gente da Action Française e sobretudo de Maritain, de Massis, de Benda talvez e até da Inglaterra do norte-americano T. S. Elliot comece a ter apoio em muitos pontos do esplêndido grupo modernista mineiro de A Revista e até mesmo de Mário de Andrade, cujas realizações apesar de tudo me parecem sempre admiráveis. Eu gostaria de falar mais longamente sobre a personalidade do poeta que escreveu o Noturno de Belo Horizonte e como só assim teria jeito pra dizer o que penso dele mais à vontade, pra dizer o que me parece bom e o que me parece mau em sua obra ― mau e sempre admirável, não há contradição aqui ―, resisto à tentação. Limito-me a dizer o indispensável: que os pontos fracos nas suas teorias estão quase todos onde elas coincidem com as idéias de Tristão de Athayde. Essa falha tem uma compensação nas estupendas tentativas para a nobilitação da fala brasileira. Repito entretanto que a sua atual atitude intelectualista me desagrada.
Nesse ponto prefiro homens como Oswald de Andrade, que é um dos sujeitos mais extraordinários do modernismo brasileiro; como Prudente de Moraes Neto; Couto de Barros e Antônio de Alcântara Machado. Acho que esses sobretudo representam o ponto de resistência necessário, indispensável contra as ideologias do construtivismo. Esses e alguns outros. Manuel Bandeira, por exemplo, que seria para mim o melhor poeta brasileiro se não existisse Mário de Andrade. E Ribeiro Couto que com Um homem na multidão acaba de publicar um dos três mais belos livros do modernismo brasileiro. Os outros dois são Losango cáqui e Pau-Brasil.

Revista do Brasil, 15/10/1926, p.9-10.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. O espírito e a letra. Estudos de crítica literária I, 1920-1947. Organização, introdução e notas Antonio Arnoni Prado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 224-228.

hoje tudo o que eu queria era ir-me embora pra pasárgada


Manuel Bandeira / James Joyce

Momento num café

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto, distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 20. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p.155. 


“O senhor Bloom entrou e sentou no lugar vago. Puxou a porta após si e bateu-a firme que fechasse firme. Atravessou um braço pela alça e mirou com seriedade pela janela aberta da carruagem para as cortinas abaixadas da avenida. Uma suspensa ao lado: uma velhinha espiando. Nariz alviachatado contra a vidraça. Agradecendo à sua estrela ter sido poupada ainda. Extraordinário o interesse que tomam por um cadáver. Alegres de nos ver partir damos-lhes tamanho trabalho chegando. A tarefa parece convir-lhes. Pisque-dizque pelas esquinas. Pisar perto em pontinhas de pé de medo que se desperte. Então é deixá-lo pronto. Aviá-lo. Molly e a senhora Fleming preparando a cama. Puxe-o mais para o seu lado. Nossa mortalha. Nunca se sabe quem te aviará morto. Lavar e pentear. Creio que lhes cortam unhas e cabelos. Guardam um tico num envelope. Crescem do mesmo modo depois. Tarefa suja. [...] Todos esperavam. Então rodas foram ouvidas de desde a dianteira girando: depois mais perto: depois cascos de cavalos. Uma parada. A carruagem deles começava a andar, rangendo e balançando. [...] Todos olharam por instante pelas suas janelas bonés e chapéus retirados pelos passantes. Respeito. A carruagem derivou dos trilhos para a estrada mais macia depois da alameda de Watery. O senhor Bloom contemplativo viu um jovem esbelto, coberto de luto, chapéu amplo.”
                                                                                                                    
JOYCE, James. Ulisses. Trad. Antônio Houaiss. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 104-105.