Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


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terça-feira, 11 de agosto de 2015

domingo, 9 de março de 2014

chove...

CANTIGAS ESQUECIDAS – III
Paul Verlaine

Chora no meu coração
Como chove na cidade;
Qual será tal lassidão
Entrando em meu coração?

Ó doce rumor da chuva
Pela terra e sobre os tetos!
Coração que se enviúva,
Ó, a cantiga da chuva!

Chora sem qualquer razão
No coração que se enfada,
Pois! Nenhuma traição?…
Este luto é sem razão.

É bem certo a pior dor
A de não saber por quê
Sem amor e sem rancor
Coração tem tanta dor!

Tradução José Lino Grünewald. Disponível aqui.


Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego...

Tão calma é a chuva que se solta no ar
(Nem parece de nuvens) que parece
Que não é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece...

Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente...

Fernando Pessoa. Poesia 1931-1935. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.199-200.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Paulo Henriques Britto

OP. CIT., PP. 164-65

“No poema moderno, é sempre nítida
uma tensão entre a necessidade
de exprimir-se uma subjetividade
numa personalíssima voz lírica

e, de outro, a consciência crítica
de um sujeito que se inventa e evade,
ao mesmo tempo ressaltando o que há de
falso em si próprio — uma postura cínica,

talvez, porém honesta, pois de boa-
fé o autor desconstrói seu artifício,
desmistifica-se para o ‘leitor-

irmão…’” Hm. Pode ser. Mas o Pessoa,
em doze heptassílabos, já disse o
mesmo — não, disse mais — muito melhor.


Paulo Henriques Britto. Tarde. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.9.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Fernando Pessoa

Sim, por fim uma certa calma...
Certa ciência antiga, sentida
Na substância da vida,
De que não há acabar da alma,
Qualquer que seja a estrada que é seguida...

Fácil visão?
Crença de muitos? Não.
Que o que sinto tem diferença.
É uma vida, não uma crença...
Não é meu: é do coração.

Sol que atingiste o ocidente,
Sei que outro te tornarei a ver —
Um outro e o mesmo no oriente:
Tudo é ilusão, mas nada mente,
O Nada que é Tudo é o Ser.

Fernando Pessoa. Poesia 1931-1935. São Paulo, Companhia das Letras, 2009, p.256.

sábado, 14 de setembro de 2013

Fernando Pessoa: "Ah, sempre no curso leve do tempo pesado / A mesma forma de viver!"

Ah, sempre no curso leve do tempo pesado
A mesma forma de viver!
O mesmo modo inútil de ser enganado
Por crer ou por descrer!

Sempre, na fuga ligeira da hora que morre,
A mesma desilusão
Do mesmo olhar lançado do alto da torre
Sobre o plaino vão!

Saudade, ‘sperança — muda o nome, fica
Só à alma vã
Na pobreza de hoje a consciência de ser rica
Ontem ou amanhã.

Sempre, sempre, no lapso indeciso e constante
Do tempo sem fim
O mesmo momento voltando improfícuo e distante
Do que quero em mim!

Sempre, ou no dia ou na noite, sempre — seja
Diverso — o mesmo olhar de desilusão
Lançado do alto da torre da ruína da igreja
Sobre o plaino vão! 

Fernando Pessoa. Poesia 1918-1930. São Paulo, Companhia das Letras, 2007, p.161.

sábado, 27 de julho de 2013

Fernando Pessoa

Onde quer que o arado o seu traço consiga
E onde a fonte, correndo, com a sua água siga
O caminho que, justo, as calhas lhe darão,
Aí, porque há a paz, está o meu coração.
Bem sei que o som do mar vem de além dos outeiros
E que do seu bom som os ímpetos primeiros
Toldam de ser diverso o natural da hora,
Quando o campo a não ouve e a solidão a ignora.
Mas qualquer cousa falsa e vera se insinua
Nos árvores que são vestígios sob a lua.

Fernando Pessoa. Poesia 1931-1935. São Paulo, Companhia das Letras, 2009, p.309.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Fernando Pessoa: "Eram todos mascarados"

Eram todos mascarados
Porque eram todos gente…
Iam muitos, misturados,
Iam misturadamente…

E sem haver entender
Entre o que um ou outro era,
Ia tudo num viver
Como dentro de uma esfera…

Era um globo de ninguém
Toda aquela mascarada,
Como uma bola que tem
A superfície pintada,

E que rola monte abaixo
Só pelo declive que há.
Se a procuro não n’acho,
Porque rolou para lá…

Para lá aonde acabou
O monte que ali começa…
E em busca dela me vou
Até que o buscar me esqueça.

Fernando Pessoa. Poesia 1931-1935. São Paulo, Companhia das Letras, 2009, p.321.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Fernando Pessoa: o cansaço e o perdão

Tenho dó das estrelas,
Luzindo há tanto tempo,
Há tanto tempo…
Tenho dó delas.

Não haverá um cansaço
Das coisas,
De todas as coisas
Como das pernas ou de um braço?

Um cansaço de existir,
De ser,
Só de ser,
O ser triste brilhar ou sorrir…

Não haverá, enfim,
Para as coisas que são,
Não a morte, mas sim
Uma outra espécie de fim,
Ou uma grande razão —
Qualquer coisa assim
Como um perdão?

Fernando Pessoa. Poesia 1918-1930. São Paulo, Companhia das Letras, 2007, p.323-324.

segunda-feira, 18 de março de 2013

Fernando Pessoa

As formigas do ardor
Mato-as sem regas nem pós,
E não sei o que é pior ―
Se ter por alguém amor
Ou alguém tê-lo por nós.

Fernando Pessoa. Poesia 1918-1930. São Paulo, Companhia das Letras, 2007, p.403-404.

terça-feira, 5 de março de 2013

Fernando Pessoa

Meus versos são meu sonho dado.
Quero viver, não sei viver,
Por isso, anónimo e encantado,
Canto para me pertencer.

O que salvamos, o perdemos.
O que pensamos, já o fomos.
Ah, e só guardamos o que demos,
E tudo é sermos quem não somos.

Fernando Pessoa. Poesia 1918-1930. São Paulo, Companhia das Letras, 2007, p.376-377.

sábado, 2 de março de 2013

Fernando Pessoa

DIFERENÇA DE PESSOA

Que lindo dia o que vemos!
Mas, como estes tempos vão,
É bom que não confiemos...
É melhor dizer que temos,
Não um dia de verão,
Mas um dia de veremos.

Fernando Pessoa. Poesia 1931-1935. São Paulo, Companhia das Letras, 2009, p.506.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Fernando Pessoa

Não digas nada a quem te disse tudo —
Tudo, esse tudo que se nunca diz…
Essas palavras feitas do veludo
A que se não sabe o matiz.

Não digas nada a quem te deu a alma…
Que a alma não se dá. O confessar
É feito só para se obter a calma
De nos ouvirmos a falar.

Tudo é inútil e também mentira.
É um pião que um garoto na estrada
Deita só para ver como ele gira.
E ele gira. Não digas nada.

Fernando Pessoa. Poesia 1931-1935. São Paulo, Companhia das Letras, 2009, p.380.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Fernando Pessoa

Ninguém me disse quem eu era, e eu
A ninguém perguntei.
Vi-me vivendo sob um vasto céu
E senti uma lei.

A informe natureza, desdobrada
Em terra e rio e mar,
Deu-me um indício, como que uma estrada
Para eu caminhar.

Mas o caminho era para quem sou,
E tinha por seu fim
O saber que o caminho por que vou
Está dentro de mim.

Fernando Pessoa. Poesia 1931-1935. São Paulo, Companhia das Letras, 2009, p.327.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Fernando Pessoa

Aqui, que é o fundo
Do fim do mundo,
Livre do tudo
De ter que ser,
Poderei, mudo
De mim, esquecer.

Sob o ermo e quedo
Grande arvoredo,
Dormindo experto,
Verei passar,
De  mim liberto,
Meu sonho no ar.

Ele é diverso
Do ser disperso
Com que, distinto
De mim sonhei.
Não penso; sinto.
Ignoro: sei.

Fernando Pessoa. Poesia 1931-1935. São Paulo, Companhia das Letras, 2009, p.236.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

fernando pessoa, sempre

A rudeza do mundo apara as arestas, suaviza os movimentos. Fernando Pessoa me consola do que em mim é lamento. Qualquer verso desse homem parece ser maior que a sombra que faz o sofrimento:

Que dia este! Quantas coisas foram
Irregulares no acontecer!

E não são todos os dias assim?

domingo, 18 de novembro de 2012

lido pouco antes de dormir: quando a madrugada chega

No ar da noite a madrugar
Há uma solidão imensa
Que tem por corpo o frio do ar.

Fernando Pessoa. Poesia 1931-1935. São Paulo, Companhia das Letras, 2009, p.130.

lido pouco antes de dormir: quando chega o sono

Mas entre mim e ver há um grande sono,
E sentir é só a janela a que eu assomo.

Fernando Pessoa. Poesia 1931-1935. São Paulo, Companhia das Letras, 2009, p.130.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Fernando Pessoa

Agita as árvores um vento
Sob o plácido azul do céu,
O que agita meu pensamento
É que hoje deixo de ser meu.

Fernando Pessoa. Poesia 1931-1935. São Paulo, Companhia das Letras, 2009, p.74.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

"Chove longínqua e indistintamente,/ Como uma coisa certa que nos minta,/ Como um grande desejo que nos mente."

A previsão do tempo vem anunciando uma chuva imprecisa para o fim de semana que começa antecipadamente amanhã. Como sói acontecer com previsões, as oscilações dão o tom. Parece certo que amanhã choverá. Há uma semana espero por essa chuva. E antes que a secura se insinue como convergência da razão, até pelo caminho mais óbvio, há uma necessidade mais premente e pueril, quase inocente: poder escutar em paz o barulhinho da chuva. São também as saudades de Fernando Pessoa.