Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
sexta-feira, 11 de janeiro de 2013
a vida
Das conversas com uma amiga, encaminhei-me para a
leitura de A morte de Ivan Ilitch. Por
mais difícil e complicado que seja viver, há esse fio frágil e tênue, a vida, o único bem
que, em qualquer sentido que se olhe, continua sendo um bem, aquém da
corrupção. A vida como um bem, um presente do acaso, a coincidência divina de
estar vivo, viver, junto a outras vidas a que se ama e se quer bem. Um dia será
preciso abrir mão deste bem.
quinta-feira, 10 de janeiro de 2013
infância, esperança, inocência e morte (um narrador cruel)
GAETANINHO
António de
Alcântara Machado
―Chi, Gaetaninho, como é bom!
Gaetaninho ficou banzando bem no meio da rua. O Ford quase o derrubou e
ele não viu o Ford. O carroceiro disse um palavrão e ele não ouviu o palavrão.
― Eh! Gaetaninho! Vem pra dentro.
Grito materno sim: até filho surdo escuta. Virou o rosto tão feio de
sardento, viu a mãe e viu o chinelo.
―Subito!
Foi-se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho. Estudando o
terreno. Diante da mãe e do chinelo parou. Balançou o corpo. Recurso de campeão
de futebol. Fingiu tomar a direita. Mas deu meia volta instantânea e
varou pela esquerda porta adentro.
Eta salame de mestre!
Ali na Rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De automóvel ou
carro só mesmo em dia de enterro. De enterro ou de casamento. Por isso mesmo o
sonho de Gaetaninho era de realização muito difícil. Um sonho.
O Beppino por exemplo. O Beppino naquela tarde atravessara de carro a
cidade. Mas como? Atrás da Tia Peronetta que se mudava para o Araçá. Assim
também não era vantagem.
Mas se era o único meio? Paciência.
Gaetaninho enfiou a cabeça embaixo do travesseiro.
Que beleza, rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empenachados levavam
a Tia Filomena para o cemitério. Depois o padre. Depois o Savério noivo dela de
lenço nos olhos. Depois ele. Na boleia do carro. Ao lado do cocheiro. Com a
roupa marinheira e o gorro branco onde se lia: Encouraçado São
Paulo. Não. Ficava
mais bonito de roupa marinheira mas com a palhetinha nova que o irmão lhe
trouxera da fábrica. E ligas pretas segurando as meias. Que beleza,
rapaz! Dentro do carro o pai, os dois irmãos mais velhos (um de gravata
vermelha, outro de gravata verde) e o padrinho Seu Salomone. Muita gente nas
calçadas, nas portas e nas janelas dos palacetes, vendo o enterro. Sobretudo
admirando o Gaetaninho.
Mas Gaetaninho ainda não estava satisfeito. Queira ir carregando o
chicote. O desgraçado do cocheiro não queria deixar. Nem por um instantinho só.
Gaetaninho ia berrar mas a Tia Filomena com mania de cantar o
"Ahi, Mari!" todas as manhãs o acordou.
Primeiro ficou desapontado. Depois quase chorou de ódio.
Tia Filomena teve um ataque de nervos quando soube do sonho de
Gaetaninho. Tão forte que ele sentiu remorsos. E para sossego da família
alarmada com o agouro tratou logo de substituir a tia por outra pessoa numa
nova versão de seu sonho. Matutou, matutou, e escolheu o acendedor
da Companhia de Gás, seu Rubino, que uma vez lhe deu um cocre danado de doído.
Os irmãos (esses) quando souberam da história resolveram arriscar de
sociedade quinhentão no elefante. Deu a vaca. E eles ficaram loucos de
raiva por não haverem logo adivinhado que não podia deixar de dar a vaca
mesmo.
O jogo na calçada parecia de vida ou morte. Muito embora Gaetaninho não
estava ligando.
― Você conhecia o pai do Afonso, Beppino?
― Meu pai deu uma vez na cara dele.
― Então você não vai amanhã no enterro. Eu vou!
O Vicente protestou indignado:
― Assim não jogo mais! O Gaetaninho está atrapalhando!
Gaetaninho voltou para o seu posto de guardião. Tão cheio de
responsabilidades.
O Nino veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem perto. Com
o tronco arqueado, as pernas dobradas, os braços estendidos, as mãos
abertas, Gaetaninho ficou pronto para a defesa.
― Passa pro Beppino!
Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo o muque.
Ela cobriu o guardião sardento e foi parar no meio da rua.
― Vá dar tiro no inferno!
― Cala a boca, palestrino!
― Traga a bola!
Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou.
Pegou e matou.
No bonde vinha o pai de Gaetaninho.
Agurizada assustada espalhou a notícia na noite.
― Sabe o Gaetaninho?
― Que é que tem?
― Amassou o bonde!
A vizinhança limpou com benzina suas roupas domingueiras.
Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da Rua do Oriente e
Gaetaninho não ia na boleia de nenhum dos carros do acompanhamento. Ia no da
frente dentro de um caixão fechado com flores pobres por cima. Vestia a roupa
marinheira, tinha as ligas, mas não levava a palhetinha.
Quem na boleia de um dos carros do cortejo mirim exibia soberbo terno
vermelho que feria a vista da gente era o Beppino.
Para gostar de ler,
vol.10 (contos brasileiros 3). 18.ed. São Paulo:
Ática, 2010, p.48-51.
a pergunta crucial
Na natação, a água e algumas adjacências, perturbadoras,
e um pensamento mais perturbador ainda ― ali, dentro da água, enquanto as
braçadas e alguma energia se processam, questões difíceis vêm à baila, ou à
tona, enquanto mergulho e respiro com força dentro da água, e então a pergunta:
Deus existe?
quarta-feira, 9 de janeiro de 2013
dois versos de emily dickinson, na tradução de augusto de campos
"A Voz que para mim é um Mar / É para os outros chã ―"
"The Voice that stands for Floods to me / Is sterile borne to some ―"
"The Voice that stands for Floods to me / Is sterile borne to some ―"
pedido de desculpas
Que ausência nova é esta, em que me percebo distante
de mim? E cansada, muito cansada, talvez também de mim, de ser alguém que
comparece como “eu” diante de um “tu”, um “ti”, um “você”. “Meu tempo é quando”,
disse o poeta. Mas ainda posso falar de um tempo que me pertença? Tenho eu alguma coisa além do pálido contorno com que me defino e afirmo? Parece-me que
tenho bem pouco ― palavras como “tempo”, “eu”, “cansaço”. E liberdade de
usá-las, inclusive a que acabo de escrever, e com a qual escrevo estas e muitas
outras coisas, inúteis e vãs.
telefone inteligente
Este foi o Natal do smartphone. É significativo o
deslumbramento com a nova sensação da tecnologia da informação ― na rua, na
chuva, na fazenda... Na mão dos alunos também.
segunda-feira, 7 de janeiro de 2013
Manuel Bandeira
CÉU
A criança olha
Para o céu azul.
Levanta a mãozinha,
Quer tocar o céu.
Não sente a criança
Que o céu é ilusão:
Crê que o não alcança,
Quando o tem na mão.
BANDEIRA, Manuel.
Poesia completa e prosa. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009,
p.184.
trecho de conversa: o tempo
― Você está lidando bem com os seus 40 e poucos anos?
― Eu estou. Quem não está é meu joelho, minha
memória...
domingo, 6 de janeiro de 2013
exílio
Um verso para esta tarde quente, árida
Em que um remoto rock clássico ecoa sua ária.
Um verso ― que o viver desordenado
Precisa repousar em alguma pátria.
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