É na
maré baixa do existir que se evidencia o que chamaria de sal humano: água
salobra minando a vida.
Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
sábado, 19 de maio de 2012
Fernando Pessoa
Meu coração foi o que o mar levou
Quando, no alto da maré,
Tudo o que a onda é me arremessou
Ao pé.
Mas se o levou só o trouxe, como a imagem
Que, reflectida ao ser assim,
Forma na sombra o rasto da paisagem
Em mim.
Fernando Pessoa. Poesia: 1931-1935. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.209.
Alejandra Pizarnik
POEMA
Tú
eliges el lugar de la herida
Alejandra
Pizarnik. Poesía completa. Barcelona: Lumen, 2000, p.155.
sexta-feira, 18 de maio de 2012
hermeneutas
Certas palavras têm o significado errado. Falácia, por exemplo, devia ser o nome de alguma coisa vagamente vegetal. As pessoas deveriam criar falácias em todas as suas variedades. A Falácia Amazônica. A misteriosa Falácia Negra.
Hermeneuta deveria ser o membro de uma seita de andarilhos herméticos. Aonde eles chegassem, tudo se complicaria.
― Os hermeneutas estão chegando!
― Ih, agora que ninguém vai entender mais nada…
Os hermeneutas ocupariam a cidade e paralisariam todas as atividades produtivas com seus enigmas e frases ambíguas. Ao se retirarem deixariam a população prostrada pela confusão. Levaria semanas até que as coisas recuperassem o seu sentido óbvio. Antes disso, tudo pareceria ter um sentido oculto.
― Alô...
― O que é que você quer dizer com isso?
Luis Fernando Verissimo. Comédias para se ler na escola. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p.111.
quinta-feira, 17 de maio de 2012
bizarrices de um país atrasado
O fiador consta como uma
das exigências para alugar um imóvel no Brasil. A alternativa é o pagamento de
um seguro fiança, que se torna, na verdade, a única saída. A não ser que se
queira enredar-se numa atrapalhação burocrática que já seria algo kafkiano se
incomodasse apenas o locatário. Qualquer pessoa com menos estômago diz não e
pergunta qual o montante do cheque para o atalho. O fiador é uma instituição
arcaica o suficiente para mostrar que ainda estamos longe de ser um povo (pois
falar em nação é certamente algo hiperbólico) emancipado de sua condição
colonial. Uma nação livre não poderia constranger dessa forma àqueles que, na
Constituição, chama de cidadãos.
Ferreira Gullar
OVNI
Sou uma coisa entre coisas
O espelho me reflete
Eu (meus
olhos)
reflito o espelho
Se me afasto um passo
o espelho me esquece:
― reflete a parede
a janela aberta
Eu guardo o espelho
o espelho não me guarda
(eu guardo o espelho
a janela a parede
rosa
eu guardo a mim mesmo
refletido nele):
sou possivelmente
uma coisa onde o tempo
deu defeito.
Ferreira Gullar. Toda poesia. 19.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010, p.328.
Fernando Pessoa
Quantas verdades achei!
E eram todas desiguais.
Quantas coisas encontrei
Que nunca mais acharei
A não ser no nunca mais!
Palavras? Não, não saber
Como é que pensar se diz
Ou como sentir tem ser
Quem saiba o que não souber ―
Esse, sim, será feliz.
Fernando Pessoa. Poesia: 1931-1935. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.276.
terça-feira, 15 de maio de 2012
chega-me à casa uma jóia
Soa na noite um grito involuntário,
Assassinaram quem nunca existiu.
Fernando Pessoa. Poesia: 1931-1935.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.276.
segunda-feira, 14 de maio de 2012
Orides Fontela
DESTRUIÇÃO
A coisa contra a coisa:
a inútil crueldade
da análise. O cruel
saber que despedaça
o ser sabido.
A vida contra a coisa:
a violentação
da forma, recriando-a
em sínteses humanas
sábias e inúteis.
A vida contra a vida:
a estéril crueldade
da luz que se consome
desintegrando a essência
inutilmente.
FONTELA, Orides. Poesia reunida. São Paulo: Cosac Naify: Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006, p.36.
domingo, 13 de maio de 2012
Orides Fontela
AURORA
Madrugada
negação da vertigem
redescoberta infinita
da luz.
Madrugada
figura limpa da unidade.
FONTELA, Orides. Poesia reunida. São Paulo: Cosac Naify: Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006, p.54.
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