O mar me traz o que alcanço experimentar como paz. Pisar
na areia é adentrar um território em que se desfruta de rara liberdade,
inclusive sem perceber. Talvez seja disso, da sensação de liberdade, que venha
a paz. Havia hoje uma espécie de bailado de pipas, de um esporte chamado
kitesurfe. De repente percebi como estar nesse outro território é também
quebrar a cadeia da percepção racional, para que outras coisas sejam vistas,
sentidas. Foi assim que vi o bailado. Vi um homem que parecia estar andando em
círculos. Mas não me detive nas pessoas. A liberdade que o mar oferece cria uma
espécie de indiferença sagrada entre os que estão ali, como se todos fossem
cultores de um deus que se confunde com o próprio altar, e que em vez de
receber traz a oferenda, é essa própria oferenda. O pôr do sol foi
deslumbrante, trazendo aos poucos tons maravilhosos para o céu e a água. E foi
enquanto caminhava na beira do mar, ao pôr do sol, que vi duas meninas
brincando de fugir das ondas que avançavam, aquele movimento de brincar com as
margens ondeantes. Ali estava a liberdade, na fluidez imprecisa do mar, fazendo
o corpo experimentar, sem perceber, uma fronteira inofensiva.
Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
terça-feira, 21 de janeiro de 2014
domingo, 19 de janeiro de 2014
Incêndios (Denis Villeneuve, Canadá-França, 2010)
Ouvi falar do filme Incêndios numa entrevista da atriz Marieta Severo, quando comentava
a adaptação teatral da peça de mesmo nome, no teatro Poeira. A atriz enfatizava
de tal forma a força dramática da peça de que foi adaptado o filme que
não havia outro jeito senão assisti-lo. O filme, uma história trágica, é
desconcertante, e pede uma segunda visada. Há o contexto contemporâneo, um país
em guerra civil, e um fundo mitológico de que o espectador pode suspeitar ao
perceber as marcas feitas no pé de um recém-nascido, filho da protagonista, Nawal
Marwan, que dela será tirado e cuja busca acaba sendo o fio condutor da
trama, contada em dois planos, a busca dela e a busca de seus dois
filhos pelo passado enigmático que ela lhes lega no testamento. A cena inicial
de Incêndios traz o desamparo
estampado no rosto de meninos. Esse desamparo, ao final, vai justificar o
perdão possível.
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