Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


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quarta-feira, 13 de novembro de 2013

o escorpião e o sapo

Penso sempre naquela fábula, em que o escorpião diz ao sapo que não pode mudar sua natureza. Essa fábula coloca um limite, talvez pouco confortável e evidente, entre o animal e o homem. Mas qualquer que seja a vocação humana, seu desafio é contrariar sua natureza.

terça-feira, 15 de maio de 2012

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

millôr fernandes: fábulas fabulosas III

OS GASTOS DISPENSÁVEIS

Estava o homem dentro da mata, cortando a sua arvorezinha, quando ouviu o grito de socorro: “Au secours! Souvez-moi!” Imediatamente, com aquela humanidade de que todos somos feitos, pôs-se a correr. Evidentemente, com aquela humanidade de que todos somos feitos, na direção contrária ao grito do socorro. Mas, por isso ou por aquilo, foi dar exatamente no local de onde partiam os gritos de socorro. Numa pequena clareira se lhe deparou então um quadro horrível: um homem, ou melhor, um camponês, lutando braço a braço com uma fera. Sentada numa pedra, com um rifle na mão, uma mulher, aparentemente mulher do camponês, contemplava a luta, pitando o seu pito. Sem saber como agir o homem avançou para os dois que lutavam, logo recuou, logo tentou avançar de novo, recuou de novo e, sem ter o que fazer, atarantado, voltou-se para a mulher e berrou: “Que faz você aí, mulher dos infernos? Por que fica assim, sem fazer nada? Por que não atira? Vamos, atire!” E a mulher, pitando seu pito, respondeu então: “Calma. Calma, homem! Pode ser que a fera me economize uma bala.”

MORAL: Os nossos pontos de vista não são necessariamente os alheios.

 Millôr Fernandes. Fábulas fabulosas. 15.ed. Rio de Janeiro: Nórdica, 1999, p.41-42.

millôr fernandes: fábulas fabulosas II

HIERARQUIA

Diz que um leão enorme ia andando chateado, não muito rei dos animais, porque tinha acabado de brigar com a mulher e esta lhe dissera poucas e boas. Ainda com as palavras da mulher o aborrecendo o leão subitamente se defrontou com um pequeno rato, o ratinho mais menos que ele já tinha visto. Pisou-lhe a cauda e, enquanto o rato forçava inutilmente pra escapar, o leão gritou: "Miserável criatura, estúpida, ínfima, vil, torpe: não conheço na criação nada mais insignificante e nojento. Vou te deixar com vida apenas para que você possa sofrer toda a humilhação do que lhe disse, você, desgraçado, inferior, mesquinho, rato!" E soltou-o. O rato correu o mais que pôde, mas, quando já estava a salvo, gritou pro leão: "Será que Vossa Excelência poderia escrever isso pra mim? Vou me encontrar com uma lesma que eu conheço e quero repetir isso pra ela com as mesmas palavras!"

MORAL: Afinal ninguém é tão inferior assim.
SUBMORAL: Nem tão superior, por falar nisso.

Millôr Fernandes. Fábulas fabulosas. 15.ed. Rio de Janeiro: Nórdica, 1999, p.110.

millôr fernandes: fábulas fabulosas I

A MORTE DA COLIBRI

Morreu a colibri. Morreu rápido, fácil, sem dores ou aflições. Morreu como um passarinho. Sua única tristeza, ao partir, parecia ser a certeza de que, como todos os colibris, o esposo morreria assim que ela abandonasse o mundo. Pois é sabido que um colibri não pode viver sem a sua companheira. Jamais houve um colibri que conseguisse resistir à morte da fêmea, eis a suprema grandeza de um amor. Mas como a colibri sabia disso, isso também sabia o dono do colibri viúvo. E, assim que a colibri morreu, o esperto dono, rapidamente, colocou diante do colibri um espelho perfeitamente polido para que a avezinha não sentisse a falta da companheira. E como tal se buscava, tal se deu. O colibri, que era míope ou narcisista, vendo-se refletido no espelho, considerou duplicada a sua vida e, assim, continuou vivendo, contrariando a lenda e a ornitologia. Mas lá veio o dia fatal em que um moleque atirou uma pedra na gaiola, tentando acertar o colibri. Não acertou no colibri mas acertou no espelho. E logo, num minuto, olhando em volta, atônito, apalermado, o colibri entrou em pânico, em agonia, e sucumbiu. O médico chegou apenas a tempo de constatar a morte e declarar a causa: morreu de espelho partido.

MORAL: Ninguém pode viver sem o reflexo da própria imagem.


Millôr Fernandes. Fábulas fabulosas. 15.ed. Rio de Janeiro: Nórdica, 1999, p.27-28.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Shifting (VFS)


As fábulas, salvo engano, com suas duras e inflexíveis lições de moral, não humanizaram o animal ao emprestar-lhe elementos humanos; ao contrário, elas brutalizaram/animalizaram o homem. Aqui, nesta curiosa inversão homem-natureza, que guarda parentesco com as fábulas, no animal encontra-se o pior do homem. P.S. Ou será ainda a projeção do pior do homem no animal?

domingo, 14 de novembro de 2010

"A raposa e o bode": duas versões

A RAPOSA E O BODE

Uma raposa caiu em um poço e foi obrigada a permanecer ali. Um bode, levado pela sede, aproximou-se do mesmo poço e, vendo a raposa, perguntou-lhe se a água estava boa. E ela, regozijando-se pela circunstância, pôs-se a elogiar a água, dizendo que estava excelente e o aconselhou a descer. Depois que, sem pensar e levado pelo desejo, o bode desceu junto com a raposa e matou a sede, perguntou-lhe como sair. A raposa tomou a palavra e disse: “Conheço um jeito, desde que nos salvemos juntos. Apoia, pois, teus pés da frente contra a parede e deixa teus chifres retos. Eu subo por aí e te guindarei.” Tendo o bode se prestado de boa vontade à proposta dela, a raposa, subindo pelas pernas dele, por seus ombros e seus chifres, encontrou-se na boca do poço, saltou e se afastou. Como o bode a censurasse por não cumprir o combinado, a raposa voltou-se e disse ao bode: “Ó camarada, se tivesses tantas ideias como fios de barba no queixo, não terias descido sem antes verificar como sair.”

Assim também, é preciso que os homens sensatos primeiro verifiquem o resultado de uma ação antes de pô-la em prática.

ESOPO. Fábulas completas. Trad. Neide Smolka. São Paulo: Moderna, 1994. Disponível em não gosto de plágio.


FOPOS DE ESÁBULA
Uma tentativa B.N. (Bossa Nova) de escrever as fábulas de Esopo
 na linguagem do tempo em que os animais falavam.

A BAPOSA E O RODE

Por um asino do destar, uma rapiu caosa num pundo profoço, do quir não consegual saiu. Um rode, passi por alando, algois tum detempo e vosa a rapendo foi mordade pela curiosidido. "Comosa rapadre” — perguntou — “que ê que vocé esti fazá aendo?" "Voção entê são nabe?" respondosa a mapreira rateu. "Vaí em a mais terrêca sível de teste a histoda do nordória. Salti aquei no foço deste pundo e guardarar a ei que brotágua sim pra mó. Porér, se vocem quisê, como é mau compedre, per me fazia companhode.” Sem pensezes duas var, o bem saltode tambou no pundo do foço. A rapente, imediatamosa, trepostas nas cou-lhes, apoifre num dos xides do bou-se e salfoço tora do fou, enquava berranto: "Adadre, compeus!"

MORAL: JAMIE CONFAIS EM QUA ESTADE EM DIFICULDÉM.


FERNANDES, Millôr. Fábulas fabulosas. Rio de Janeiro: Nórdica, 1999, p.76. 

quarta-feira, 19 de maio de 2010

"A raposa e as uvas" - Millôr Fernandes

De repente a raposa, esfomeada e gulosa, fome de quatro dias e gula de todos os tempos, saiu do areal do deserto e caiu na sombra deliciosa do parreiral que descia por um precipício a perder de vista. Olhou e viu, além de tudo, à altura de um salto, cachos de uvas maravilhosos, uvas grandes, tentadoras. Armou o salto, retesou o corpo, saltou, o focinho passou a um palmo das uvas. Caiu, tentou de novo, não conseguiu. Descansou, encolheu mais o corpo, deu tudo o que tinha, não conseguiu nem roçar as uvas gordas e redondas. Desistiu, dizendo entre dentes, com raiva: "Ah, também, não tem importância. Estão muito verdes." E foi descendo, com cuidado, quando viu à sua frente uma pedra enorme. Com esforço empurrou a pedra até o local em que estavam os cachos de uva, trepou na pedra, perigosamente, pois o terreno era irregular e havia o risco de despencar, esticou a pata e... conseguiu!  Com avidez colocou na boca quase o cacho inteiro. E cuspiu. Realmente as uvas estavam muito verdes!

MORAL: A frustração é uma forma de julgamento tão boa como outra qualquer.

FERNANDES, Millôr. Fábulas fabulosas. 15. ed. Rio de Janeiro: Nórdica, 1999, p. 116.