Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
sábado, 27 de julho de 2013
Fernando Pessoa
Onde
quer que o arado o seu traço consiga
E onde a fonte, correndo, com a sua água siga
O caminho que, justo, as calhas lhe darão,
Aí, porque há a paz, está o meu coração.
Bem sei que o som do mar vem de além dos outeiros
E que do seu bom som os ímpetos primeiros
Toldam de ser diverso o natural da hora,
Quando o campo a não ouve e a solidão a ignora.
Mas qualquer cousa falsa e vera se insinua
Nos árvores que são vestígios sob a lua.
Fernando
Pessoa. Poesia 1931-1935. São Paulo, Companhia
das Letras, 2009, p.309.
sexta-feira, 26 de julho de 2013
Orides Fontela
Vemos por espelho
e enigma
(mas haverá outra forma
de ver?)
FONTELA, Orides. Poesia reunida. São Paulo: Cosac Naify: Rio
de Janeiro: 7 Letras, 2006, p.341.
quinta-feira, 25 de julho de 2013
Fernando Pessoa: "Eram todos mascarados"
Eram
todos mascarados
Porque eram todos gente…
Iam muitos, misturados,
Iam misturadamente…
Porque eram todos gente…
Iam muitos, misturados,
Iam misturadamente…
E sem haver entender
Entre o que um ou outro era,
Ia tudo num viver
Como dentro de uma esfera…
Entre o que um ou outro era,
Ia tudo num viver
Como dentro de uma esfera…
Era um globo de ninguém
Toda aquela mascarada,
Como uma bola que tem
A superfície pintada,
Toda aquela mascarada,
Como uma bola que tem
A superfície pintada,
E que rola monte abaixo
Só pelo declive que há.
Se a procuro não n’acho,
Porque rolou para lá…
Só pelo declive que há.
Se a procuro não n’acho,
Porque rolou para lá…
Para lá aonde acabou
O monte que ali começa…
E em busca dela me vou
Até que o buscar me esqueça.
O monte que ali começa…
E em busca dela me vou
Até que o buscar me esqueça.
Fernando
Pessoa. Poesia 1931-1935. São Paulo, Companhia
das Letras, 2009, p.321.
quarta-feira, 24 de julho de 2013
thelma & louise à brasileira
"A Novela das 8" é um bom filme
ruim, como aliás muitos que se fazem por aqui.
Mas não é péssimo, horroroso ou
impossível de ser assistido (sem constatar o tempo todo a pobreza dos
recursos). A ideia é boa — simplesmente o resto é falho, fraco: elenco,
direção, roteiro... A ideia, se tivesse sido bem aproveitada, executada, mostraria
o dilema fundamental deste país, desde a Colônia: a distância entre o universo
da fantasia, na falta de termo melhor, e a realidade — ou, conforme frase lida
em ensaio de Roberto Schwarz, saber a
diferença entre compensações imaginárias e realidade, não importa o quanto este conceito em si seja
espinhoso. O que catalisa a distância entre essas duas instâncias no filme é a
boate carioca que inspirou a novela brasileira talvez mais famosa da década de
70: Dancin’ Days. Da novela à boate, as duas “heroínas” atravessam percursos
distintos que se tangenciam. Para quem participou do imaginário da novela, o
filme vale como uma pálida sessão nostalgia, somente no plano imaginário,
obviamente, porque a realidade era dura, minada pela ditadura, e não deixou saudades.
Recentemente, em sala de aula, ao comentar o caráter hiperbólico das imagens
dos poemas de Castro Alves que clamavam contra os horrores da escravidão no
Brasil, voltei-me para uma aluna e disse que nenhuma hipérbole é suficiente
para o sofrimento. Ela argumentou que, embora pudesse ser assim, as hipérboles
cumpriam seu papel no poema, não traíam o que nele se queria expressar.
Voltando ao filme, não há hipérboles ou outros recursos mais expressivos. Há
uma tentativa de realidade, a partir da costura de recortes mal enquadrados.
Direito ao ócio
O ócio deveria ser reconhecido como um direito fundamental do ser
humano, assim como o direito a uma boa noite de sono. Se etimologicamente
negócio é "negação do ócio", então ócio simplesmente poderia ser entendido como
o livre direito de não fazer nada, nada que significasse “produzir”, pelo menos com
fins explícitos ou programados. O Houaiss dá algumas definições curiosas de
ócio: “s.m. 1. cessação do trabalho; folga, repouso, quietação, vagar; 2. espaço de tempo em que se descansa; 3. falta de ocupação;
inação, ociosidade; 4. falta de disposição física; preguiça, moleza,
mandriice, ociosidade; 5. fig.
trabalho leve, agradável. etim
lat. otìus, 'lazer, repouso'.” A partir da terceira
acepção, o pejorativo se insinua. De tantas definições, o ócio fica ocupado: lazer,
ócio criativo, trabalho leve, agradável... O ócio, no sentido de um direito,
estaria na primeira acepção. Quietação. Nem mesmo a meditação. Simplesmente quietar.
terça-feira, 23 de julho de 2013
Arte antes e depois da guerra
Sem desejar incorrer em qualquer heresia ao falar de
dois filmes aclamados pela crítica, pertencentes a convenções estéticas distintas,
o fato é que a casualidade levou-me a vê-los praticamente em sequência, no
mesmo dia. O primeiro eu assisti no Canal Arte 1, ao zapear o controle ao acaso
na manhã do último domingo. Trata-se de A Fita Branca (2009), filme de Michael Haneke tão perturbador quanto
enigmático, deixando para o espectador uma série de dúvidas sombrias referentes
à maldade, à perversidade e à crueldade humanas. Independente do contexto da
Primeira Guerra Mundial que se aproxima, a ideia é que todo mal nasce no homem
e em suas estranhas formas de vida em comunidade. Ao final do filme, a notícia do
atentado em Saravejo soa menos impactante que tudo o que o espectador acabou de
presenciar, sem deixar de projetar em si as tais sombras. O segundo filme,
desta vez escolhido, foi Hiroshima, mon amour (1959), filme de Alain Resnais que tenta elaborar a angústia
existencial que se projetou sobre a geração que sobreviveu à Segunda Guerra
Mundial. Naturalmente é-me muito mais complicado falar deste filme, pela
própria opção estética e sua filiação à nouvelle
vague. Também não sou boa leitora de Marguerite Duras, roteirista do
filme. Mas percebi que havia visto, em sequência no mesmo dia, dois filmes
em que um elemento agregador meu, muito próprio, se inseriu, além de uma
ligação um tanto mais óbvia: Emmanuelle Riva, a belíssima protagonista de Hiroshima, mon amour, foi dirigida
recentemente por Michael Haneke no premiado Amour
(2012) — a que ainda não assisti. O elemento agregador é um tanto imponderável,
a guerra e suas sombras, o antes e o depois, as possibilidades da arte para
falar do que não tem conserto nem nunca terá.
domingo, 21 de julho de 2013
Mário Quintana
Romance sem
palavras
Há vidas, longas
vidas que deixam em nossa lembrança — não uma história mas um certo ar, um
clima, uma presença apenas.
Oh! aquelas velhas
tias provincianas...
Vidas de uma
harmonia tão sutil, tão simples e tão lenta que nem se nota.
Como uma valsinha
que alguém fosse tocando ao piano espaçadamente — com um dedo só...
Mário Quintana. A vaca e o hipogrifo. Rio de Janeiro: Objetiva,
2012, p.115.
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