Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
sábado, 26 de maio de 2012
Fernando Pessoa: "Quem me diz que sou quem julgo?"
Quem me diz que sou quem julgo?
Os doidos é que estão certos.
Por bem ou mal, não promulgo...
Mas quem dera ter abertos
Os ouvidos ao segredo
Da fantasia que engana
E ser quem não se é sem medo
Segundo a maneira humana!
Todos sabem a verdade
Menos eu, que a procurei
Com tanta sinceridade!
Fernando Pessoa. Poesia: 1931-1935. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.127.
Murilo Mendes
SOMOS TODOS POETAS
Assisto em mim a um desdobrar de planos.
As mãos veem, os olhos ouvem, o cérebro se move,
A luz desce das origens através dos tempos
E caminha desde já
Na frente dos meus sucessores.
Companheiro,
Eu sou tu, sou membro do teu corpo e adubo da tua alma.
Sou todos e sou um,
Sou responsável pela lepra do leproso e pela órbita vazia do cego,
Pelos gritos isolados que não entraram no coro.
Sou responsável pelas auroras que não se levantam
E pela angústia que cresce dia a dia.
As mãos veem, os olhos ouvem, o cérebro se move,
A luz desce das origens através dos tempos
E caminha desde já
Na frente dos meus sucessores.
Companheiro,
Eu sou tu, sou membro do teu corpo e adubo da tua alma.
Sou todos e sou um,
Sou responsável pela lepra do leproso e pela órbita vazia do cego,
Pelos gritos isolados que não entraram no coro.
Sou responsável pelas auroras que não se levantam
E pela angústia que cresce dia a dia.
MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.298.
escritor vira notícia
Esta
semana Dalton Trevisan virou notícia, e teve sua discreta rotina perturbada.
Desencantado, alheio a prêmios, ele se exerce na arte da solidão, de onde sai a
nota breve em forma de conto: “Pouco importa se nunca mais dormir. Afinal você
não pode ter tudo.” [Guerra conjugal. 10.ed. Rio de Janeiro: Record, 1995, p.86]
sexta-feira, 25 de maio de 2012
um verso para revolucionar a vida (paulo leminski)
"Quem nasce com coração? / Coração tem que ser feito."
quinta-feira, 24 de maio de 2012
Fernando Pessoa: eu me re-signo
Eu me resigno. Há no alto da montanha
Um penhasco saído,
Que, visto de onde toda coisa é estranha,
Deste vale escondido,
Parece posto ali para o não termos,
Para que, vendo-o ali,
Nos contentemos só com o aí vermos
No nosso eterno aqui...
Eu me resigno. Esse penhasco agudo
Talvez alcançarão
Os que na força firme põem tudo.
De teu próprio silêncio altivo escudo,
Não vás, meu coração.
Fernando Pessoa. Poesia: 1931-1935. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.208.
respiração da vida
De
vez em quando sinto palpitar em mim uma Mariana mais forte e corajosa, a
Mariana que fui quando atendi ao ímpeto de não temer o mundo, de enfrentá-lo,
de lutar pela consecução de meu destino. Uma Mariana que ouviu muito rock na
juventude, que agia por critérios próprios, que tinha a coragem de sofrer sem
achar que o sofrimento era um mal sem fim, que tinha em si a força de saber-se
protegida pelo bem que trazia, desde sempre, em si. Essa Mariana é a pessoa que quero em mim, para mim, pois sua força sempre foi além de qualquer contingência.
terça-feira, 22 de maio de 2012
Clarice Lispector
SEGUIR A FORÇA MAIOR
É determinismo, sim. Mas seguindo o próprio determinismo é que se é livre. Prisão seria seguir um destino que não fosse o próprio. Há uma grande liberdade em se ter um destino. Este é o nosso livre-arbítrio.
LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.140.
segunda-feira, 21 de maio de 2012
Henriqueta Lisboa
JAULAS
De uma para outra jaula.
Com farrapos ou plumas,
cerceando balbucios ou vascas,
é o berço minúscula
jaula.
A cela, a varanda, a casa,
o jardim, a cidade,
com seus itens e suas parlendas,
são enredos ― de vime ou ferro ―
de uma próspera
jaula.
O alto céu
disposto em toldo, tombando
sobre os flancos da terra,
é uma vistosa
jaula.
Com seus planetas e suas lunetas
assestadas.
Também o cérebro: de si próprio
arquiteto e
jaula:
cego além dos relâmpagos.
Henriqueta Lisboa. Flor da morte. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004, p.50.
domingo, 20 de maio de 2012
Fernando Pessoa: a difícil coragem
Basta às vezes
Uma voz harmoniosa,
Um sorriso casual que dá agrado
Para aliviar
Muita e tanta
Tontura ou confusão da mente.
Não me fales por enquanto.
Baixa os olhos.
Baixa-os lentos sem deixares
De me ver.
Tudo merece atenção,
Até o amor,
Se não for demasiado.
Hoje quero só esquecer.
Fernando Pessoa. Poesia: 1931-1935. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.494.
tiririca
O
brasileiro que é excessivamente tolerante com os políticos que o representam o é
porque, no lugar deles, faria a mesma coisa.
sinuosidade da linguagem
O que as pessoas dizem da gente, em caráter de julgamento, diz mais delas que de nós.
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