“Eu estou roubando
do espelho, é isso?” Esta fala,
que saiu em lugar de outra, efetivamente dita a um outro, num momento em que
sua rememoração foi apreendida como sintoma de angústia, é absolutamente
libertária, pois se eu posso roubar do
espelho, então eu não estou tão à mercê do que em mim é angústia quanto
(me) supunha, seja a que motivou a fala ou outra.
Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
quinta-feira, 3 de janeiro de 2013
Orides Fontela: a coisa, apreendida, rende-se?
CAÇA
Visar o centro
ou, pelo menos,
o melhor lado
(o mais frágil).
Astúcia e tempo
(paciência armada)
e ― na surpresa
do golpe rápido ―
colher a coisa
que, apreendida,
rende-se?
Não: desnatura-se
ao nosso ato...
Ou foge.
FONTELA, Orides. Poesia reunida. São Paulo: Cosac Naify:
Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006, p.159.
chuva de verão
A forte
chuva que cai agora, e que para mim é apenas uma agradável paisagem
semibucólica pela janela, para muitos cariocas significa transtorno, morte e destruição, então não dá nem mesmo para ficar
feliz com ela.
ingenuidade
A minha ingenuidade parece mesmo incurável, e quase
tendo a vê-la como um defeito. Sequer parece haver antídoto ou vacina para ela.
Não adianta eu me precaver ou me prevenir para não parecer ou ter atitudes
ingênuas. A prevenção cria um artifício frágil que, ao erigir-se em moldurada da ação, deixa brechas por onde a inevitável vida aflora, emerge, e aí percebo que
foi vã a tentativa de não ser (ou parecer) ingênua. Não há saída. Talvez seja
possível fazer da ingenuidade uma possibilidade de doçura e bondade, em vez de
tentar esmagá-la sob o imperativo de ser sempre esperto, veloz e capaz ― “sempre
alerta”. O espírito de escoteiro é questionável exceção de acampamento. Não gostaria de ser ingênua (parecer já é outra coisa), mas intuo que pouco disso está sob controle.
Talvez seja mesmo ingênuo achar que está.
quarta-feira, 2 de janeiro de 2013
"O grande abismo infinito para cima": Álvaro de Campos
O que é a arte, senão o modo com que alguns conseguem
escapar da contingência? A vida é um mistério tão grande que seria bem capaz do
homem aloprar de vez, caso lograsse entender.
a intensidade da vida
Nos dias que se seguiram ao Natal, vivi uma
experiência ainda pouco palpável pelas palavras ― pelo menos aquelas com que se
escreve (ou que se escrevem, dependendo do modo com que se hierarquiza palavra
e escrita). Mas foi uma experiência que se colocou muito concretamente, e que
agora quer avançar pelo terreno escorregadio da escrita. Terreno, aliás, é
uma palavra que já diz alguma coisa do que foi vivido, pelo menos num sentido
etimológico, fazendo pensar, por exemplo, em terra. Assim como na história dos
pombos, não sei bem como e se conseguirei falar. Sinto que é preciso um cuidado
maior, uma delicadeza que tem sido difícil encontrar. Ao mesmo tempo, está tudo
muito latente, vivo, pedindo uma continuação na escrita, como se... não, não se
trata de legitimar o que foi vivido, pois o que foi vivido cabe na contiguidade
do viver. Trata-se do modo como o vivido bate em cada um, em cada vida, e como
isso mesmo acaba dando um contorno próprio ao que se vive. Em mim ainda não
terminou de bater, de chegar, e por isso a escrita, para mim, surge como parte
do vivido. Por enquanto é isso.
Álvaro de Campos (humor cáustico socorrendo a alma)
Sucata de alma
vendida pelo peso do corpo,
Se algum guindaste te eleva é para te despejar...
Nenhum guindaste te eleva senão para te baixar.
Olho analiticamente, sem querer, o que romantizo sem querer...
PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos. Ed. Teresa Rita Lopes. São
Paulo: Companhia de Bolso, 2007, p.411.
terça-feira, 1 de janeiro de 2013
reflexão gratuita
A cosmologia não deixa de ser um sucedâneo do
cristianismo: buscar no céu o que não é possível encontrar na terra. Talvez por
isso, dentro da mesma lógica, olhemos para o céu, brilhante de fogos de
artifício, na passagem de ano. O que então se vê é intensamente belo ― e
efêmero. Atributos paradoxais quando se trata do sentimento simbolizado na cor
branca que ritualiza a chegada do ano novo. A paz é difícil, mas despojada de artifícios.
segunda-feira, 31 de dezembro de 2012
domingo, 30 de dezembro de 2012
Orides Fontela: o poema bate à porta do viver
O estranho
bate:
na amplitude
interior
não há resposta.
É o estranho
(o irmão) que bate
mas nunca haverá
resposta:
muito além é o país
do acolhimento.
FONTELA, Orides. Poesia reunida. São Paulo: Cosac Naify:
Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006, p.347.
chuva abrandando o calor
Saí para fazer a habitual caminhada noturna e resolvi
tomar outra rota, em direção à casa de minha irmã, por conta da outra irmã que
lá esperava, não necessariamente por mim. Ajudei no que pude com minha presença,
e depois voltei, também caminhando. Caía uma chuva fresca, leve, quase uma
garoa. Um trecho da rua quase vazio de pedestres, só veículos. Depois gente de
novo. E bastante gente no bar, já perto de casa, o que fez lembrar do dia que é
hoje, certa leveza no ar, a alegria das pessoas que estão já comemorando a
chegada do ano novo, nessa falsa véspera de segunda-feira.
não se escapa
Não importa quem você seja, haverá sempre um teórico (que pode ser bem prático) a dizer alguma coisa sobre “você”.
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