Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 9 de fevereiro de 2013

desintoxicando-me

Tentar ser o que os outros esperam de nós, o que os discursos esperam que cada vida-existência seja. Falava disso na última sessão de análise, da angústia decorrente, quando disse a palavra envenenamento. Tinha ido para a sessão bastante angustiada com minhas dores físicas ― fazendo trocadilhos do tipo: estou cheia de dores, estou cheia da dor ― e com muito medo de falar delas, das dores, porque poderiam se irritar e aumentar (não aumentaram, ao contrário, passaram a incomodar menos). Foi quando saiu a questão das expectativas, o preço que se paga por. Disse envenenamento porque lá, na sessão, e suficientemente livre para falar, eu conseguia perceber o quão nefasto pode ser tentar ser o que determinado espectro discursivo legitima como existência autêntica, plena, rica de experiências. O outro é outro, inatingível. Eu sentia muita culpa. Culpa pelas escolhas que fiz, que por obscuros caminhos ― que eu tentava supor ― teriam desembocado nas dores físicas, supondo também a pertinência de minhas suposições. Uma escolha nunca é totalmente livre, porque ela passou pelo abandono de alguma coisa, o que exige renúncia de quem escolhe, e isso a cada passo, a cada milésimo de passo, uma vida se fazendo. Os desdobramentos de tentar atender alheias expectativas, que acabam por compor com as próprias, podem terminar por estiolar a árvore que cada um nasceu para ser. 

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

realismo

"É-se feliz na Austrália, desde que lá não se vá." Álvaro de Campos

em águas profundas

Estou lendo um livro ― seria melhor dizer livrinho, pela pouca extensão e pelo caráter despretensioso ― do David Lynch, Em águas profundas, sobre os benefícios da meditação transcendental. Estou lendo e por enquanto nadando, na superfície de águas tranquilas.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

a belíssima "Lilia" em versão jazzística

do CD Native Dancer 
versão original: CD Clube da Esquina

envenenamento

Estava falando ontem de uma forte angústia na sessão de análise, quando, para tentar exprimir seu efeito sobre minha vida, ou melhor, o efeito de suas causas, disse a palavra envenenamento ― pensamento então subjacente: o que envenena Emma são as histórias (românticas) que ela leu... pensamento agora subjacente: vi faz umas duas semanas uma moça de pé no metrô, comum, uma moça de suburbano coração ― a contar da linha do metrô em que estava ― lendo em pé no metrô Madame Bovary, numa edição recente da Companhia das Letras. Lia Madame Bovary (como a outra personagem célebre lia A dama das camélias?) e, não sei se são meus preconceitos, o fato é que a moça de pé no metrô lendo Madame Bovary a caminho do trabalho compunha um quadro incomum, inesperado, a sugerir que não há mesmo sentido evidente... Não que eu esperasse uma mocinha da zona sul lendo de pé Madame Bovary no metrô. Não esperava nada, e nem é disso que se trata. Trata-se da confluência entre a cena moça-comum-lendo-madame-bovary-de-pé-no-metrô  e as angústias que levei ontem para a sessão, acerca de um certo bovarismo com que a vida vai ganhando incerto e por vezes complicado contorno, muitas vezes angustiante... Como escapar ao próprio círculo vicioso da linguagem, que não me deixa falar dessa moça sem apelar para o lugar comum? Porque é claro que eu também sou comum, e não escapo ao círculo vicioso da angústia.

Muddy Waters in The Last Waltz

Vladimir Maiakóvski

ALGUM DIA VOCÊ PODERIA? 

Manchei o mapa quotidiano
jogando-lhe a tinta de um frasco 
e mostrei oblíquas num prato 
as maçãs do rosto do oceano. 

Nas escamas de um peixe de estanho 
li lábios novos chamando. 

E você? Poderia 
algum dia 
por seu turno tocar um noturno 
louco na flauta dos esgotos? 

1913

Maiakóvski: poemas. Trad. Boris Shnaiderman, Augusto de Campos e Haroldo de Campos. 8.ed. São Paulo: Perspectiva, 2011, p.66. Tradução deste poema: Haroldo de Campos.

a força do vento, do que está blowin' in the wind

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

flores do jardim da infância

Eu queria estar colhendo flores, muitas flores, das sementes que plantei na aurora da vida ― quando a palavra inocência não fazia sentido, porque não era requisitada. 

canção maravilhosa, interpretação perfeita de milton nascimento

Voa Bicho
Telo Borges / Márcio Borges

Ah, andorinha voou, voou, fez um ninho no meu chapéu
e um buraco bem no meio do céu
e, lá vou eu como um passarinho, sem destino nem sensatez
sem dinheiro nem pro pastel chinês
ah, andorinha voou, voou, fez um ninho na minha mão
e um buraco bem no meu coração
e, lá vou eu como um passarinho, como um bicho que sai do ninho
sem vacilo, nem dor na minha vez
ah, andorinha voa veloz, voa mais do que minha voz
andorinha faz a canção que eu não fiz
andorinha voa feliz, tem mais força que minha mão
mas sozinha não faz verão
(versão com Telo Borges)

homem elegante

"você tem a coisa mais preciosa que existe: candura" 
(clarice lispector dirigindo-se a chico buarque)

memórias póstumas de brás cubas: um narrador cruel e cético

CAPÍTULO XIII / UM SALTO

UNAMOS agora os pés e demos um salto por cima da escola, a enfadonha escola, onde aprendi a ler, escrever, contar, dar cacholetas, apanhá-las, e ir fazer diabruras, ora nos morros, ora nas praias, onde quer que fosse propício a ociosos.
Tinha amarguras esse tempo; tinha os ralhos, os castigos, as lições árduas e longas, e pouco mais, mui pouco e mui leve. Só era pesada, a palmatória, e ainda assim... Ó palmatória, terror dos meus dias pueris, tu que foste o compelle intrare com que um velho mestre, ossudo e calvo, me incutiu no cérebro o alfabeto, a prosódia, a sintaxe, e o mais que ele sabia, benta palmatória, tão praguejada dos modernos, quem me dera ter ficado sob o teu jugo, com a minha alma imberbe, as minhas ignorâncias, e o meu espadim, aquele espadim de 1814, tão superior à espada de Napoleão! Que querias tu, afinal, meu velho mestre de primeiras letras? Lição de cor e compostura na aula; nada mais, nada menos do que quer a vida, que é a mestra das últimas letras; com a diferença que tu, se me metias medo, nunca me meteste zanga. Vejo-te ainda agora entrar na sala, com as tuas chinelas de couro branco, capote, lenço na mão, calva à mostra, barba rapada; vejo-te sentar, bufar, grunhir, absorver uma pitada inicial, e chamar-nos depois à lição. E fizeste isto durante vinte e três anos, calado, obscuro, pontual, metido numa casinha da Rua do Piolho, sem enfadar o mundo com a tua mediocridade, até que um dia deste o grande mergulho nas trevas, e ninguém te chorou, salvo um preto velho — ninguém, nem eu, que te devo os rudimentos da escrita.
Chamava-se Ludgero o mestre; quero escrever-lhe o nome todo nesta página: Ludgero Barata — um nome funesto, que servia aos meninos de eterno mote a chufas. Um de nós, o Quincas Borba, esse então era cruel com o pobre homem. Duas, três vezes por semana, havia de lhe deixar na algibeira das calças, — umas largas calças de enfiar —, ou na gaveta da mesa, ou ao pé do tinteiro, uma barata morta. Se ele a encontrava ainda nas horas da aula, dava um pulo, circulava os olhos chamejantes, dizia-nos os últimos nomes: éramos sevandijas, capadócios, malcriados, moleques. Uns tremiam, outros rosnavam; o Quincas Borba, porém, deixava-se estar quieto, com os olhos espetados no ar.
[...] 

Machado de Assis. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Globo, 2008, p.70-72.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

memória:

AVAREZA

Os momentos mais belos de nossa vida, desconfio que ficam para sempre esquecidos, porque a memória, essa velha avarenta, os rouba e guarda a sete chaves no baú.

Mário Quintana. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p.688.