Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
sábado, 22 de outubro de 2011
Ivan Lessa: A chave do tamanho
Minha altura ― disso eu suspeitava ― acompanhara a ruína total como se eu fora um restaurante na Praça Tiradentes do Rio. [aqui]
e. e. cummings
minha especialidade é viver ― era a legenda
de um homem(que não tinha renda
porque não estava à venda)
olhar à direita ― replicaram num segundo
dois bilhões de piolhos públicos do fundo
de um par de calças(moribundo)
my specialty is living said
a man(who could not earn his bread
because he would not sell his head)
squads right impatiently replied
two billion public lice inside
one pair of trousers(which had died)
e. e. cummings. Poem(a)s. 2.ed. Trad. Augusto de Campos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011.
obedecer desobedecer
Você obedece, instintivamente obedece, até que um dia não concorda, aprende a não concordar, desobedece, arca com a desobediência até não poder mais, volta a obedecer com a sensação de ser um desobediente rendido, obediente tendo latente em si a desobediência, experimenta de novo a desobediência, sente frio, sente dor, percebe que os limites testam o próprio corpo, a alma é agreste mas o corpo é civil, deseja então um outro corpo, um corpo apto para a desobediência, mas percebe que ce n’est pas possible, é com esse pobre e frágil corpo que terá que se haver, sabendo que as duas coisas, obediência e desobediência, têm endereço certo no corpo, pois que precisam dele para sustentar seu movimento.
numa noite muitas noites
Das imagens desta noite ficou-me mais viva a última (as outras já se perdendo naquela névoa que sobra dos sonhos), eu fazendo uma estranha salada, sem intenção inicial de fazê-la, pois que apenas misturava ingredientes pouco ortodoxos ao conceito de salada que tinham restado próximo a mim, enquanto as outras pessoas saíam para fazer coisas que julgava bem mais interessantes, tanto que me tomava a frustração de não poder ir também. No entreato dos atos fiquei e mexia aquela mistura com cara de nada, nonsense, até que percebi tratar-se de uma salada, ainda que com componentes exóticos e um aspecto de incompletude ― é que quando percebi o que se passava comecei a me empenhar para que aquilo ganhasse a forma que reconhecia, e é claro que as palavras com que dou contorno às imagens do fragmento do sonho são já outra camada dos ingredientes (fragmentos) que misturava, percebendo-lhes uma liga (aliás eles ofereciam mesmo alguma resistência ao movimento), ao mesmo tempo em que a palavra salada é só uma concessão ao que se passava. Assim como a palavra abacate ou lentilha. Com as sobras de vários sonhos dentro do sonho eu estava a fazer uma salada.
e. e. cummings
Não sei se consigo ler e. e. cumings: o próprio conceito de leitura é distorcido diante de suas intercalações e cortes abruptos (tmese, conforme Augusto de Campos). Mas isso não impede de apreciar a beleza de suas criações, ou esperar uma nova rodada para que o obscuro se dê ao entendimento.
A música é de John Cage e a voz de Robert Wyatt (aqui).
sexta-feira, 21 de outubro de 2011
Chico Buarque
“Como no caso dessa história do verso que você está apontando [‘amar uma mulher sem orifício’]. Sei exatamente como ela foi criada: num blog de um cara da revista Veja, que tem uma enorme estima pela minha pessoa e gosta de lançar esse tipo de futrica. Ali vale tudo, já sugeriram até que se desapropriasse meu campo de futebol para a construção de casas populares. É um problema que vem de muitos anos, uma questão doentia de uma revista contra um artista. Parece que o cara que manda nessa revista tem ambições literárias. Então ele não gostou de os meus livros ganharem prêmios, porque ele quer ser escritor. Aí, decidi me vingar. Sabe o que eu fiz? Li o romance do cara, um tal de [Mario] Sabino. Não é parente do Fernando Sabino, acho. Fui até o fim, li tudo, tudo. E fiquei tranquilo, passou a raiva [risos]. Falei: ‘Bom, o melhor que esse cara tem a fazer é ser editor da revista Veja’.”
Rolling Stone, n.61, out. 2011, p.106-108.
mais um ditador
O progresso do capitalismo é de fato notável, e não há qualquer contradição nisso, afinal o progresso é a tônica que move este vitorioso sistema político e econômico: sem a noção de progresso e de tempo linear, cristã em princípio, o capitalismo não teria encontrado chão onde semear suas flores de aço. Como tal, não se pode esperar delas o mesmo papel reservado às flores na morte tradicionalmente vivenciada. O mais estranho em tudo continua sendo a confusão das versões, a eliminação, junto com o inimigo, de seu corpo, o sequestro dessa morte, que se entrevê, nas frinchas dos relatos, como tendo sido extremamente violenta, insuportavelmente violenta para quem dela participou ou vivenciou. Então é preciso explodir em felicidade, em comemoração ao novo ritual do morto sem corpo, explodido com a violência. O corpo desaparece, e o mais perverso de tudo é que o corpo sequestrado do ritual das antigas flores não permite que o ciclo se encerre: as flores de aço compareceram de tal forma na morte violenta que o horror de tudo esgarça de vez a possibilidade do ritual. Ou quem deixaria de ficar chocado com a imagem do ditador abatido flagrada por um celular? Quem sabe o tempo do progresso também traía uma circularidade ― ao contrário da tão propalada linearidade ― e estejamos vivendo uma coisa nova, uma retomada de etapas consideradas já superadas, em que a nova ritualização da morte não difere da barbárie, embora seja difícil aceitar isso, assim como aceitar que isso não vale só para ditadores, afinal as explicações dadas são as mesmíssimas para outras mortes que envolvem confrontos políticos violentos por territórios, vale dizer, por poder.
quinta-feira, 20 de outubro de 2011
Dante Milano
ENUMERAÇÃO
Há alguém que dê à vida
Toda a atenção devida?
Há um sol que olha espantado,
Um grande mar parado,
Um vento sem destino,
Um presente não presente,
O espaço que não passa,
As luzes que são cegas,
Um pântano estrelado,
Uma pedra que pensa,
A poeira que é ouro.
Há um monstro que sorri,
Um pássaro que é príncipe,
O oculto no evidente,
As sombras que sã gente,
A gente que é ninguém,
O olhar desconhecido,
A prece não ouvida,
O andarilho deitado,
Uma flor ofendida,
Um boi desiludido,
Um cão desorientado,
Objetos escondidos,
Coisas aparecidas,
E as desaparecidas
Para sempre esquecidas.
MILANO, Dante. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: Núcleo Editorial da UERJ, 1979, p.195.
breve encontro
Ao chegar à janela a surpresa
(fugacidade de um instante,
breve intervalo entre
a sensação viva e a
consciência da sensação)
do sol batendo em cheio na janela da vida.
Como um sol, a sensação deslizou ―
por poucos instantes,
que, percebidos,
já escapavam
junto com a sensação ―
a sensação deslizou
da consciência
(consciência tomando corpo)
para o corpo ―
aquecendo-o no inesperado
encontro com a vida.
Franz Kafka (narrativas do espólio)
SOBRE OS SÍMILES
Muitos se queixam de que as palavras dos sábios não passam de símiles, mas não utilizáveis na vida diária ― e esta é a única que temos. Quando o sábio diz: “Vá para o outro lado”, ele não quer significar que se deva passar para o lado de lá, o que, seja como for, ainda se poderia fazer, se o resultado da caminhada valesse a pena; ele no entanto se refere a algum outro lado lendário, a alguma coisa que não conhecemos, que nem ele consegue designar com mais precisão e que, também neste caso, não pode nos ajudar em nada. Todos esses símiles, na realidade, querem apenas dizer que o inconcebível é inconcebível, e isso nós já sabíamos. Porém aquilo como que nos ocupamos todos os dias são outras coisas.
A esse respeito alguém disse: “Por que vocês se defendem? Se seguissem os símiles, teriam também se tornado símiles e com isso livres dos esforços do dia a dia”.
Um outro disse: “Aposto que isso também é um símile”.
O primeiro disse: “Você ganhou”.
O segundo disse: “Mas infelizmente só no símile”.
O primeiro disse: “Não, na realidade; no símile você perdeu”.
KAFKA, Franz. Narrativas do espólio. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.210-211.
profissões
Eu poderia ter me tornado médico
advogado
psicólogo
biólogo.
Havia ― sempre houve ― muitas oportunidades para
animador de auditório,
profissão difusa que se exerce somando à palavra talento
o vasto campo coberto pela palavra carisma,
escondendo sob o tapete
o fantasma da palavra desemprego.
Também a poesia não quis saber de mim.
Restei literato amador, pouquíssimos amigos
e nenhuma filosofia de vida.
Marianne Moore: poesia: a place for the genuine
POESIA
Eu também não gosto lá muito dela: há coisas mais importantes
que toda essa charanga.
Lendo-a, todavia, com o mais perfeito desdém, a gente acaba
descobrindo
nela, afinal de contas, um lugar para o genuíno.
Mãos que podem apertar, olhos
que se podem dilatar, cabelo capaz de eriçar-se
se for preciso, tais coisas são importantes não porque uma
grandiloquente interpretação lhes possa ser aposta mas
porque são
úteis. E se ficam tão derivativas que chegam a ser
ininteligíveis,
o mesmo se poderá dizer de qualquer um de nós, que não
admiramos aquilo que
não podemos compreender: o morcego
pendurado de cabeça para baixo ou em busca de algo
que
comer, os elefantes empurrando, um cavalo selvagem se espojando,
incansável lobo debaixo de
uma árvore, o crítico estacionário encolhendo a pele como um
cavalo picado por um mosquito, o fan de base-
ball, o estatístico ―
e nem está direito
discriminar contra “documentos comerciais e
livros escolares”; todos esses fenômenos são importantes. A gente
deve fazer uma distinção
contudo: quando eles são arrastados à preeminência por semipoetas,
o resultado não é poesia,
e nem ― até que os poetas dentre nós possam ser
“literalistas da
imaginação”, acima
do insolente e do trivial e possam apresentar a quem
quiser inspecionar, jardins imaginários contendo sapos de verdade ―
é que ela será
nossa. Enquanto isso, se você exigir por um lado
a matéria-prima da poesia
todo o seu primarismo e
aquilo que é por outro lado
genuíno, então você se interessa por poesia.
POETRY
I, too, dislike it: there are things that ar important
beyond all this fiddle.
Reading it, however, with a perfect contempt for it, one
discovers in
it after all, a place for the genuine.
Hands that can grasp, eyes
that can dilate, hair that can rise
if it must, these things are important not because a
high-sounding interpretation can be put upon them but
because they are
useful. When they become so derivative as to become
unintelligible,
the same thing may be said for all of us, that we
do not admire what
we cannot understand: the bat
holding on upside down or in quest of something to
Eat, elephants pushing, a wild horse taking a roll, a tire
less wolf under
a tree, the immovable critic twitching his skin like a
horse that fells a flea, the base ―
ball fan, the statistician ―
nor is it valid
to discriminate against “business documents and
“school-books”; all these phenomena are important. One
must make a distinction
however: when dragged into prominence by half-poets,
the result is not poetry,
nor till the poets among us can be
“literalists of
the imagination” ― above
insolence and triviality and can be present
for inspection, imaginary gardens with real toads in them,
shall we have
it. In the meantime, if you demand on the hand,
the raw material of poetry in
all its rawness and
that which is on the other hand
genuine, then you are interested in poetry.
FAUSTINO, Mário. Poesia completa e traduzida. Org. Benedito Nunes. São Paulo: Max Limonard, 1985, p.284-287.
terça-feira, 18 de outubro de 2011
chegando junto
O novo comercial da nextel é de fato sedutor, mais em sua versão curta que na estendida. Mas depois que a piada de mau gosto do momento disse o que disse, sobre o ator e a companhia telefônica, a boa companhia subjacente, o que está chegando junto nos bastidores não é flor que se cheire.
possivelmente isso estaria certo se não fosse outro modo de dizer que
pressão
compressão
incompreensão
apreensão
apreender
aprender
repreender
prender―
capturar em signos o nirvana que abre as portas da prisão encenada nas possibilidades da linguagem, que prende em signos os sentidos que querem apreender o sentido da vida, percebendo sutilmente que a palavra capturar é uma traição à promessa do nirvana, que não se deixar atrair por torneios de linguagem.
OU
vislumbrar signos ― palavras ― com mais possibilidades que impossibilidades de significar qualquer coisa que não seja sempre a mesma coisa, a mesma prisão do já sabido nos sentidos dados nas palavras criadas para dizer esses sentidos e não outros ― a cama metafórica oferecida pela linguagem deixa entrever, no sonho, como uma espécie de concessão, outros caminhos que a linguagem pode trilhar, por exemplo sem a palavra pressão.
OU
compreender que na palavra pressão está a própria pressão ― por isso a palavra pressão, e não outra, foi criada, para fazer e significar pressão, e quanto mais se sente a pressão mais se compreende que na palavra pressão e suas mil e uma úteis utilitárias utilidades está a opressão do signo, da linguagem, opressão que é uma pressão levemente assimilada e incorporada, o corpo domado pela pressão da linguagem sonhando mundos tão incompreensíveis que sequer chegam à esfera da linguagem.
OU
o que são signos senão impressões de sentidos (sentidos impressos) que o mundo vai deixando nas muitas camadas de nosso ser, ser que quer ser, quer apaixonadamente ser, e vai tentando desbravar caminhos na linguagem?
domingo, 16 de outubro de 2011
José Régio
ESTAÇÃO TÉRMINO
Como um navio no mar
A meio da noite a casa,
E o vento e a chuva em redor.
Lá dentro, a um canto do lar
Onde um bom tronco se abrasa,
O homem sentado espera.
Se alguém chegar,
Terá luz, terá calor.
Batem à porta. Quem dera
Que fosse realidade!
Já teve tais decepções
O homem que há tanto espera!
Mas agora, alguém batera
Que chega da tempestade,
Que percorreu solidões...
“Entre quem é!” Pode ser
Alguém que venha roubar,
Assassinar, ofender...
“Entre quem é!” Não importa.
Se alguém vem que bate à porta,
O homem só quer abrir.
Chegou, por fim, a saber,
Que, lá venha quem vier,
Seja quem for,
Só um dos dois pode ser
Desde que não a fingir:
A Morte, o Amor.
José Régio: Antologia. Seleção Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p.242-243.
SLAB
SLAB from Matt Kleiner on Vimeo.
Quem olha para o mar não pode esperar apenas placidez:
deve saber o quanto há nele de revolto e imprevisível.
Dora Ferreira da Silva
ESPERANÇA
Pousa num golpe o pássaro do verde
súbito nascido de seu voo.
Ecoa o telegrama em nosso peito.
Conferimos as poucas letras
de tão longe vindas
de tão fundo oriundas
vindas e chegadas
a um porto de partida.
Apagadas as letras
soletramos a sós
o sol
da comunhão com tudo.
Dora Ferreira da Silva. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p.105.
letras
Tenho um amigo que, volta e meia, por e-mail, me chama de Marina ― o que me agrada, porque além de ter uma suavidade oscilando nas letras, etimologicamente é puro mar. Já quando outra amiga me escreve, noto que o contato foi salvo como Maraiana. Um dia resolvi perguntar e ela disse que quando percebeu a troca das vogais quis deixar, porque lhe pareceu que o nome assim ganhava uma nova beleza, ou dimensão. Assenti. As letras e suas incríveis possibilidades.
ilustração de Poty para Augusto Matraga
Ilustração da 13ª edição de Sagarana, editora José Olympio
Augusto Matraga é marcado por seu inimigo, na descida ao inferno que quase o atirou à morte ― o que não deixa de ser uma morte simbólica ―, com um ferro incandescente contendo um triângulo inscrito numa circunferência. Walnice Nogueira Galvão, no ensaio "Matraga: sua marca" (visualização parcial), observa:
“Muitos e muitos séculos mais tarde, uma personagem de ficção, o Matraga, também saberá transformar sua marca de ignomínia em marca de pertença. Ferrado como rês no quarto traseiro com ferro de ferrar gado, reservado a animal e propriedade, trilhará o duro caminho da penitência e cumprirá em seu destino o sinal numinoso ― triângulo em circunferência ― com que foi marcado. Mas antes de chegar lá, e praticamente a meio caminho, a questão da marca reaparece, com enorme força, no surgimento do fenômeno da estigmatização.” (p.64)
“As duas figuras geométricas, circunferência e triângulo, têm ao mesmo tempo um estatuto igual e oposto. Igual, porque ambas são, a mesmo título, figuras primárias da Geometria Plana. Oposto porque a circunferência, constituída por um número infinito de pontos, enquanto círculo tem tendencialmente um número infinito de lados, e o triângulo o número mínimo possível de lados para constituir uma figura geométrica. Esta igualdade na oposição, e oposição na igualdade, evidentemente não poderia passar despercebida e há séculos perturba a mente humana.” (p.72)
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