Generalizar sobre o ser humano, elaborando abstrações,
não me interessa ou diz respeito. Precisei de uma semana para apreender a
inversão dos parâmetros contemporâneos que se opera em “A Pele que Habito”, um
Almodóvar trágico. De mim sei o que posso saber hoje, e o que posso saber a
cada instância da linha descontínua da existência parece sofrer das
irregularidades do terreno. O que posso saber de mim hoje mostra (a mim) alguém
diferente de quem já me supus ou acreditei em outras paragens, ainda que
aparentemente sob a mesma pele. O que mais me espanta é como algumas pessoas —
e aqui traio a intenção de não generalização — conseguem estar sempre iguais, operação
que parece demandar um esforço admirável de acomodação. Vejo a pele que habito
envelhecendo aos poucos, enquanto o ser que espreita sob ela... é... é o que o
cotidiano permite, o que as energias de hoje permitem. Eu preciso agradecer aos
amigos, os poucos que o abraço de hoje consegue abrigar, por não desistirem de
mim, apesar do (tão) pouco que tenho conseguido fazer ou oferecer. E preciso também
reconhecer que tenho me obrigado a estar mais presente. Nenhum clichê de
amizade, apenas uma deserção suave dos lugares comuns.
Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
sábado, 7 de setembro de 2013
sexta-feira, 6 de setembro de 2013
quinta-feira, 5 de setembro de 2013
quarta-feira, 4 de setembro de 2013
verissimo, domingo, n'o globo
POETAS
Luis Fernando Verissimo
1/09/13
Ainda não sabemos tudo sobre Marte, mas sabemos o
bastante para dizer que ele nos decepcionou. Marte foi um blefe. Os tais canais
vistos pelas lunetas antigas, provas de que haveria alguma forma de vida
inteligente no planeta, mesmo que fosse só de engenheiros, não eram canais.
Nenhum vestígio de qualquer tipo de vida apareceu em Marte, muito menos o de
uma civilização de homenzinhos verdes, ou de qualquer outra cor, com a
capacidade para invadir a Terra. Anos e anos de literatura premonitória e
previsões terríveis foram desperdiçados. Nos apavoraram por nada. Como no
Iraque, também não havia armas de destruição em massa em Marte.
Mas, se Marte revelou ser um imenso parque de
estacionamento, que não ameaça a Terra, isso não quer dizer que não existam
civilizações lá fora que cedo ou tarde entrarão em contato conosco, exigindo
nossa submissão ou anunciando a invasão.
Nada nos assegura que, se ainda não fomos invadidos
por exércitos extraterrenos, não tenha havido — ou esteja havendo neste momento
— missões de prospecção e espionagem, feitas por destacamentos avançados ou por
agentes isolados. Não quero assustar ninguém, mas vou contar. Já tive contato
com um desses agentes extraterrestres. Desconfiei quando ele disse “Vocês são
engraçados...” e eu perguntei: “Vocês”, quem? “Vocês” brasileiros? “Vocês”
carecas? “Vocês” míopes? Destros? Cardiopatas? E ele respondeu: “Vocês, gente.”
E me confessou (já tinha bebido um pouco) que não
era deste mundo, era de outro, e estava prospectando o Universo inteiro atrás
de um planeta para ser colonizado pelo seu. Achava que tinha, finalmente,
encontrado este planeta. Era a Terra. No seu relatório, recomendaria que a
Terra fosse ocupada e sua principal riqueza natural explorada, pois era o que
faltava no planeta do qual viera.
Perguntei qual era a riqueza natural que nós
tínhamos e eles não e o extraterrestre respondeu: “A poesia.” E perguntou:
“Você sabe que a Terra é o único planeta do universo conhecido em que as
pessoas dão nome aos ventos?” Fiquei lisonjeado com aquilo, pensando: “Taí,
somos todos poetas e não sabíamos”, e perguntei o que fariam com os poetas da
Terra no planeta dele.
— Comê-los, claro — respondeu ele.
E explicou que não havia mais poetas no seu planeta
porque já tinham comido todos. Ou como eu imaginava que eles tinham se tornado
uma civilização tão avançada?
a poesia existe para que a vida ganhe ritmo
Mas peço perdão
pela heresia
de pressupor
uma finalidade
para a poesia.
domingo, 1 de setembro de 2013
a pele que habito (pedro almodóvar, 2011)
O filme “A Pele Que Habito” traz latente questões não
redutíveis a uma abordagem simplificadora. Depende muito da forma com que é
apropriado pelo espectador. Por exemplo, o papel libertador da arte, ou a
possibilidade de se ir muito além da pele, ao contrário do caráter
aparentemente epidérmico (sem que isso soe uma redundância) da
contemporaneidade. De todo modo, é um Almodóvar bastante subversivo — e
perturbador.
enfim, manoel de barros
EU
NÃO VOU PERTURBAR A PAZ
De
tarde um homem tem esperanças.
Está
sozinho, possui um banco.
De
tarde um homem sorri.
Se
eu me sentasse a seu lado
Saberia
de seus mistérios
Ouviria
até sua respiração leve.
Se
eu me sentasse a seu lado
Descobriria
o sinistro
Ou
doce alento de vida
Que
move suas pernas e braços.
Mas,
ah! eu não vou perturbar a paz que ele depôs na praça, quieto.
Manoel
de Barros. Poesia completa. São
Paulo: Leya, 2010, p.35.
Rubem Braga
O padeiro
Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira
no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento — mas não encontro o pão
costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da
véspera sobre a "greve do pão dormido". De resto não é bem uma greve,
é um lock-out,
greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o
povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do
governo.
Está bem. Tomo o meu café
com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou me
lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o
pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os
moradores, avisava gritando:
— Não é ninguém, é o
padeiro!
Interroguei-o uma vez: como
tivera a ideia de gritar aquilo?
"Então você não é
ninguém?"
Ele abriu um sorriso largo.
Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a
campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa
qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir
a pessoa que o atendera dizer para dentro: "não é ninguém, não senhora, é
o padeiro". Assim ficara sabendo que não era ninguém...
Ele me contou isso sem mágoa
nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que
estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu
também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que
deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina —
e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o
jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno.
Ah, eu era rapaz, eu era
rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que
levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia
uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na
porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade
daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; "não é ninguém, é o
padeiro!"
E assobiava pelas escadas.
Rubem
Braga. 200 crônicas escolhidas. 29.ed. Rio de Janeiro: Record,
2008, p.321-322.
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