A bicycle trip from lorenzo veracini on Vimeo.
Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
sexta-feira, 24 de agosto de 2012
Murilo Mendes
VIGÍLIA
Ninguém moverá para mim
A máquina do sonho e da noite.
Eu a moverei.
Tantos corpos já rodaram...
A caligrafia das constelações é claríssima.
Tantos amores dissonantes
Se alimentaram de mim.
Fui construído a golpes de angústia:
E já vejo se erguer no horizonte
O futuro momento de cinza
Guardado pelos deuses-estandartes.
Até quando, Ente oblíquo,
Abusarás de minha sede?
MENDES,
Murilo. Poesia completa e prosa. Rio
de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.345.
quinta-feira, 23 de agosto de 2012
quarta-feira, 22 de agosto de 2012
pensar contra si
"Somos
adestrados durante um tempo excessivamente longo na estupidez, e no fim ela se
transforma numa segunda natureza... A primeira coisa que pensamos está sempre
errada... é um reflexo condicionado. É preciso pensar contra si mesmo e viver na terceira pessoa." (Respiração artificial, Ricardo Piglia)
terça-feira, 21 de agosto de 2012
respirando profundamente na linguagem
A
palavra que vence e atravessa a resistência da linguagem ― é o que hoje
me ocorreu, por analogia ao esforço que fazia dentro da água. Incomparável o
bem-estar de uma aula de natação... Ainda assim, imperando o corpo e o esforço
físico, eu divagava sobre a resistência que a linguagem oferece a quem quiser dela
mais que a superfície movente do pensamento.
Fernando Pessoa
Que dia este! Quantas coisas foram
Irregulares no acontecer!
Fernando Pessoa. Poesia: 1931-1935. São Paulo: Companhia
das Letras, 2009, p.358.
segunda-feira, 20 de agosto de 2012
domingo, 19 de agosto de 2012
«Cheguei a Lisboa, mas não a uma conclusão»
Este post deu-me, por pura necessidade de começar de
algum lugar, o ensejo de perfilar
palavras que me inquietam há cerca de dois dias. Trata-se de uma intuição em
aparência simples: é sexta-feira e estou voltando, já no final do dia, para
casa, vindo do dentista. Estou descendo a Grajaú-Jacarepaguá. O motorista é
rápido. É quando percebo que o horário e o contexto receitariam o
percurso inverso, já que estou dando as costas aos inúmeros e cheios de apelo
signos culturais da cidade, anunciados com bastante eloquência na primeira
edição do telejornal, para tão somente vir (ou voltar) para casa, à qual finalmente,
e convicta, chego, o que não implica qualquer conclusão.
lobos
Ontem dormi durante o dia, o que é garantia de insônia
à noite. À noite, o sono teimava em não vir, enquanto eu ia lendo trechos avulsos
de Deleuze, até não poder mais. A dada altura, comecei a ouvir uma espécie de grito intermitente,
desconfortável. Havia acabado de ler um trecho sobre o homem que sonha com
lobos, em “Cinco proposições sobre a psicanálise”: “(...) quando o Homem dos
lobos sonha com seis ou sete lobos, o que é por definição uma matilha, a saber,
um certo tipo de grupo, Freud só pensa em reduzir esta multiplicidade, em
reconduzir tudo a um só lobo, que será forçosamente o pai.” Qualquer que seja a
riqueza sugestiva do trecho e suas implicações interpretativas, o fato é que a
própria contiguidade de tudo deu-me os lobos: os gritos intermitentes que ia
ouvindo, no limite do estridente, vinham da rua: tratava-se de um grupo que
voltava, vindo muito lentamente e em passos errantes, e um deles gritava a
intervalos curtos. Por que o fazia? A quem queriam atingir, aqueles gritos? Ou
não queriam nada, apenas eco do insuportável silêncio da madrugada vazia? Nunca
poderei saber. Insone ou não, a madrugada é um campo em que lobos correm
uivando violentamente. Voltando a dormir, sonhei com outra espécie de lobos, mais
familiares e perigosos.
pausa para respirar
O cotidiano é o lugar por excelência da vida. Certa
recorrência, as tarefas rotineiras e a ausência de brilho são traços do viver
miúdo. Um outro traço seria a aleatoriedade da ação, no sentido de que não há
urgência, pressa ou mesmo uma ordenação hierárquica que obrigue as coisas a
serem dessa e não daquela maneira. E é nessas brechas, na disponibilidade para
o imprevisto, que o cotidiano pode surpreender ― ou ser surpreendido ― no sentido de que o próprio
imprevisto pode irromper. Dá-se a coincidência de uma pausa com uma música, por
exemplo, ou uma música que leva a uma pausa, e alguma coisa começa a acontecer:
está-se respirando, respirando, respirando... E no movimento da respiração
percebe-se, finalmente, o cansaço, cansaço do contínuo sem pausas para respirar.
sobre as ilhas desertas (deleuze)
“A ideia de uma segunda origem dá todo seu sentido à ilha
deserta, sobrevivência da ilha santa num mundo que tarda para recomeçar. No
ideal do recomeço há algo que precede o próprio começo, que o retoma para
aprofundá-lo e recuá-lo no tempo. A ilha deserta é a matéria desse imemorial ou
desse mais profundo.”
DELEUZE, Gilles. A ilha deserta e outros textos.
Org. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Iluminaras, 2006, p.22.
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