Não há nada mais sagrado que a
palavra. No limiar da palavra encontra-se a dúvida, que detém em espera,
expectativa e silêncio ― cada palavra uma longa, longuíssima história. No
flagrante instantâneo, presente chamado, dessa história, como se tudo tivesse evoluído
para que barata pudesse se chamar barata, depara-se com a vulgaridade da coisa
objetivada em palavras imediatas. A objetivação da coisa em coisa-palavra, cada
coisa com sua palavra-chave, chave que abre a coisa ao domínio, à posse. Mas a
coisa esquiva-se, e antes quer dominar quem a nomeia com simplicidade e ao
mesmo tempo perfeita convicção de que é senhor do domínio chamado linguagem, e de que uma barata jamais foi outra coisa senão barata. Na verdade domina. Ao homem
não basta a linguagem que nomeia as coisas, ele precisa das coisas para
afirmar-se. Nunca precisou tanto. Coisas, muitas, caras, sofisticadas,
consumidas publicamente, ou pelo menos tendo sua posse e consumo publicados,
tornados públicos. Coisas de uso privado e individual, mas ao mesmo tempo pertencendo
a uma bolsa de valores em que não faz sentido possuir a coisa se sua posse não
puder ser divulgada. Isso determina o seu valor, e o valor de quem a possui.
Quando se percebe, a palavra já está a tal ponto subordinada à coisa que a
liberdade ― palavra que nomeia algo tão intangível ― torna-se impossível.
“Liberdade ― essa palavra,/ que o sonho humano alimenta:/ que não há ninguém
que explique,/ e ninguém que não entenda!” ― dizem os belíssimos versos de
Cecília Meireles, versos que nos desconcertam ao final de Ilha das Flores, este
filme que revira pelo avesso palavras e coisas, na esperança de encontrar o
homem.
Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
sábado, 21 de abril de 2012
a animação que segue é muito forte
Trata-se de um vídeo dirigido por Heath Ledger pouco antes de
sua morte para uma canção do Modest House. Parodiando o dito do camundongo para Alice: gostarias do ser
humano se fosses baleia?
malabarismo
A
propósito de uma crônica de Luis Fernando Verissimo cujo desfecho criava certo
suspense, uma aluna, após muitas discussões entre os alunos, disse que o autor
queria exatamente aquilo, provocar o debate, a imprecisão dos limites entre o
que é realidade e o que é imaginação. E, como eram as duas últimas aulas do dia
e eu já estava no piloto automático, enveredei por um caminho que me levou a
dizer mais ou menos o seguinte, enquanto olhava para a concretude e a certeza
das carteiras (certeiras) à minha frente: que nós nos agarramos à concretude do
mundo para viver. Num ônibus, em pé, não é preciso se segurar para não cair?,
perguntei a um aluno, enquanto encenava o gestual com as mãos. Ele me olhou
concreto. Aí disse o que não havia até então pensando: que nós nos seguramos
nas palavras para não cair, somos malabaristas, equilibristas. E há alguns
excelentes, como Luis Fernando Verissimo.
Paulo Leminski: já começo a ficar cheio de não saber quando eu falto...
SUJEITO INDIRETO
Quem dera eu achasse um jeito
de fazer tudo perfeito,
feito a coisa fosse o projeto
e tudo já nascesse satisfeito.
Quem
dera eu visse o outro lado,
o lado de lá, lado meio,
onde o triângulo é quadrado
e o torto parece direito.
o lado de lá, lado meio,
onde o triângulo é quadrado
e o torto parece direito.
Quem
dera um angulo reto.
Já começo a ficar cheio
de não saber quando eu falto,
de ser, mim, indireto sujeito.
Já começo a ficar cheio
de não saber quando eu falto,
de ser, mim, indireto sujeito.
Paulo Leminski. Distraídos venceremos. São Paulo:
Brasiliense, 1987. Livro disponível aqui.
sexta-feira, 20 de abril de 2012
Álvaro de Campos: existir sem Freud nem aeroplanos
A liberdade, sim, a liberdade!
A verdadeira liberdade!
Pensar sem desejos nem convicções.
Ser dono de si mesmo sem influência
de romances!
Existir sem Freud nem aeroplanos,
Sem cabarets, nem na alma, sem
velocidades, nem no cansaço!
A liberdade do vagar, do pensamento
são, do amor às coisas naturais
A liberdade de amar a moral que é
preciso dar à vida!
Como o luar quando as nuvens abrem
A grande liberdade cristã da minha
infância que rezava
Estende de repente sobre a terra
inteira o seu manto de prata para mim...
A liberdade, a lucidez, o raciocínio
coerente,
A noção jurídica da alma dos outros
como humana,
A alegria de ter estas coisas, e poder
outra vez
Gozar os campos sem referência a
coisa nenhuma
E beber água como se fosse todos os
vinhos do mundo!
Passos todos passinhos de criança...
Sorriso da velha bondosa...
Apertar da mão do amigo sério...
Que vida que tem sido a minha!
Quanto tempo de espera no apeadeiro!
Quanto viver pintado em impresso da
vida!
Ah, tenho uma sede sã. Deem-me a
liberdade,
Deem-ma no púcaro velho de ao pé do
pote
Da casa do campo da minha velha
infância...
Eu bebia e ele chiava,
Eu era fresco e ele era fresco,
E como eu não tinha nada que me
ralasse, era livre.
Que é do púcaro e da inocência?
Que é de quem eu deveria ter sido?
E salvo este desejo de liberdade e de
bem e de ar, que é de mim?
PESSOA,
Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos. Ed. Teresa Rita
Lopes. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007, p.381-382.
quinta-feira, 19 de abril de 2012
baratas do asfalto
Voltava para casa no conforto do ônibus
que descia engrenado a serra, engrenado e firme, atributos que a passagem mais cara
comprou. Observava os veículos que ultrapassavam ― como, na soma das
velocidades, eles pareciam mais lentos do que estavam. Os modelos mais modernos
têm rodas cujo design dão uma estranha suavidade à impressão visual do
movimento: o carro desliza no asfalto, roda macio. Nunca entendi o fenômeno
físico envolvido na ilusão de ótica das rodas do carro, que parecem não estar
girando tão depressa quanto estão. O fato é que há muitos carros, macios ou
enferrujados, rodando ao mesmo tempo. É que a indústria automobilística do país
(montadoras) não pode parar, senão a economia desaquece e o desemprego sobe. E
como são muitos, indo na mesma direção, olhados à certa distância fazem lembrar
baratas.
ana hatherly: a palavra-escrita
A palavra-escrita
é um labor arcaico:
sulca enigmas
venda e desvenda
o sentido do gesto
É uma imagem detida
recolhida do mais fundo cinema íntimo
onde o verdadeiro
é um ser invisível
O cinema do mundo está aí
onde houver ilusão
onde houver vontade de ver
mesmo que seja só o nada.
Ana
Hatherly. A idade da escrita e outros
poemas. São Paulo: Escrituras, 2005, p.90.
quarta-feira, 18 de abril de 2012
um belíssimo poema de ana hatherly
Os poemas estão a
caminho.
Paul Celan
Os poemas são uma peregrinação
uma crença
que impele o poeta ao corpo a corpo
com o abismo que o cerca
A batalha é infinita
assenta no interesse do acaso
do ocaso
dos infinitos mortos
em cujos ombros subimos
incansáveis
Qual é o prazer do caminhante
senão
o de encontrar a invisível ponte
a ambição de ousar?
A nostalgia é um erro da paixão
O poema é um rio de vozes
Ana
Hatherly. A idade da escrita e outros
poemas. São Paulo: Escrituras, 2005, p.97.
terça-feira, 17 de abril de 2012
clarice lispector acompanhando a madrugada
RECONHECENDO
O AMOR
― Este aqui, disse ela apontando para o filho menor
com um sorriso de carinho, eu só tive porque descobri tarde demais e já não
havia mais jeito de tirar fora.
O menino abaixou os
olhos e sorriu com modéstia.
Clarice Lispector. Para não
esquecer: crônicas. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.102.
domingo, 15 de abril de 2012
Alexei Bueno: livro de haicais
Tudo a natureza,
Cruel, perdoa. Os arbustos
Crescem sobre os crimes.
BUENO, Alexei. Livro de haicais. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, p.215.
Paulo Leminski
O ASSASSINO ERA O ESCRIBA
Meu professor de análise sintática era o tipo do sujeito
inexistente.
Um pleonasmo, o principal predicado da sua vida,
regular como um paradigma da 1ª conjugação.
Entre uma oração subordinada e um adjunto adverbial,
ele não tinha dúvidas: sempre achava um jeito
assindético de nos torturar com um aposto.
Casou com uma regência.
Foi infeliz.
Era possessivo como um pronome.
E ela era bitransitiva.
Tentou ir para os EUA.
Não deu.
Acharam um artigo indefinido em sua bagagem.
A interjeição do bigode declinava partículas expletivas,
conetivos e agentes da passiva, o tempo todo.
Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça.
LEMINSKI, Paulo. Caprichos e relaxos. São Paulo, Brasiliense, 1983, p.144. Obs.: em "Tentou ir para is EUA", uma piscadela para Drummond. Livro para leitura online:
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